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| Pag. | |
| A mãe | 3 | 
| O ouro | 12 | 
| Doçura e bondade | 13 | 
| O malmequer | 14 | 
| Não quero | 20 | 
| Piloto | 21 | 
| O rico e o pobre | 23 | 
| Como um camponez aprendeu o Padre Nosso | 26 | 
| O talisman | 28 | 
| A alma | 30 | 
| Alberto | 31 | 
| A canção da cerejeira | 33 | 
| Os gigantes da montanha e os anões da planície | 35 | 
| A creança, o anjo e flôr | 37 | 
| Presente por presente | 41 | 
| O pinheiro ambicioso | 44 | 
| Perfeição das obras de Deus | 46 | 
| João e os seus camaradas | 52 | 
| O rabequista | 60 | 
| Os pecegos | 62 | 
| A urna das lagrimas | 64 | 
| Reconhecimento e ingratidão | 65 | 
| O fato novo do sultão | 68 | 
| Boa sentença | 74 | 
| Os animaes agradecidos | 76 | 
| O ermitão | 83 | 
| Carlos Magno e o abade de S. Gall | 85 | 
| A boneca | 88 | 
| Inconveniente de riqueza | 99 | 
| Querer é poder | 102 | 
| Qual será rei? | 104 | 
| Os três véos de Maria | 106 | 
| Os pequenos no bosque | 107 | 
| O chapellinho encarnado | 109 | 
| Os cinco sonhos | 113 | 
| A egreja do rei | 115 | 
| O valente soldado de chumbo | 117 | 
| João Pateta | 123 | 
| Branca de Neve | 126 | 
| A rapariguinha e os phosphoros | 134 | 
| O primeiro peccado de Margarida | 138 | 
| Um nome inscripto no céo | 141 | 
| O linho | 142 | 
Produced by / Produzido por Manuela Alves (Spelling modernization of the
original version, already available at Project Gutenberg. / Actualização
ortográfica da versão original, já disponível no Project Gutenberg.)
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 Estava uma mãe muito aflita, sentada ao pé do
      berço do seu filho, com medo que lhe morresse. A criancinha pálida
      tinha os olhos fechados. Respirava com dificuldade, e às vezes tão
      profundamente, que parecia gemer; mas a mãe causava ainda mais lástima
      do que o pequenino moribundo.
 
 Nisto bateram à porta, e
      entrou um pobre homem muito velho, embuçado numa manta de arrieiro.
      Era no Inverno. Lá fora estava tudo coberto de neve e de gelo, e o
      vento cortava como uma navalha.
 
 O pobre homem tremia de frio; a
      criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se
      a pôr ao lume uma caneca com cerveja. O velho começou a
      embalar a criança, e a mãe, pegando numa cadeira, sentou-se
      ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez
      com mais dificuldade, pegou-lhe na mãozinha descarnada e disse para
      o velho:
 
 Oh! Nosso Senhor não mo há-de levar! não
      é verdade?―
 
 [4]E o
      velho, que era a Morte, meneou a cabeça duma maneira estranha, em
      ar de dúvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão,
      e as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada
      com um grande peso de cabeça; estava sem dormir havia três
      dias e três noites. Passou ligeiramente pelo sono, durante um
      minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.
 
 ―Que
      é isto! exclamou, lançando à volta de si o olhar
      alucinado. O berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora,
      roubando-lhe a criança.
 
 A pobre mãe saiu
      precipitadamente, gritando pelo filho. Encontrou uma mulher sentada no
      meio da neve, vestida de luto. «A Morte entrou-te em casa, disse-lhe
      ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais depressa que o vento,
      e o que ela furta nunca o torna a entregar.»
 
 ―Por
      onde foi ela? gritou a mãe. Diz-mo pelo amor de Deus!»
      
 ―Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de
      preto. Mas só to ensino, se me cantares primeiro todas as canções
      que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa.
      Eu sou a Noite e muitas vezes tas ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
      
 ―Cantar-tas-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe.
      Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.―
      
 A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas,
      começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas
      foram mais do que as palavras.
 
 [5]No
      fim disse-lhe a Noite: «Toma à direita, pela floresta escura
      de pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu filho.»
      
 A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o
      caminho, e não sabia que direcção havia de seguir.
      Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de
      cujos ramos pendia a neve cristalizada.
 
    
      
 ―Não viste a Morte que levava o meu filho?»
      perguntou-lhe a mãe.
 
 ―Vi, respondeu o matagal, mas
      não te ensino o caminho, senão com a condição
      de me aqueceres no teu seio, porque estou gelado.»
 
 E a mãe
      estreitou o matagal contra o coração; os espinhos
      dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de
      folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno
      frigidíssima, tal é o calor febricitante do seio duma mãe
      angustiosa.
 
 E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir.
      Foi andando, andando, até que chegou à margem dum grande
      lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava
      suficientemente gelado para se andar por ele, e era demasiadamente
      profundo para o passar a vau. Contudo, querendo encontrar o seu filho, era
      necessário atravessá-lo. No delírio do seu amor,
      atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda a água do
      lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por compaixão,
      faria talvez um milagre.
 
 [6]―Não!
      não és capaz de me esgotar, disse o lago. Sossega, e
      entendamo-nos amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das
      minhas águas, e os teus olhos são dum brilho mais suave do
      que as pérolas mais ricas que eu tenho possuído. Se queres,
      arranca-os das órbitas à força de chorar, e
      levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: essa
      estufa é a habitação da Morte; e as flores e as
      árvores que estão lá dentro, é ela quem as
      cultiva; cada flor e cada árvore é a vida duma criatura
      humana.»
 
 ―Oh! o que não darei eu, para
      reaver o meu filho!» disse a mãe. E apesar de ter já
      chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e
      os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do
      lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não
      teve no mundo uma rainha.
 
 O lago então ergueu-a, e com
      um movimento de ondulação depositou-a na outra margem, aonde
      havia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de
      comprido. De longe não se sabia se era uma construção
      artística ou uma montanha com grutas e florestas. Mas a pobre mãe
      não podia ver nada; tinha dado os seus olhos.
 
 ―Como
      hei-de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho!» bradou ela
      desesperada.
 
 ―A Morte ainda não chegou,
      respondeu-lhe uma boa velha, que andava dum lado para o outro,
      inspeccionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste tu aqui parar?
      Quem te ensinou o caminho?»
 
 ―Deus auxiliou-me,
      respondeu ela. Deus é misericordioso. [7]Compadece-te
      de mim, e diz-me onde está o meu filho.»
 
 ―Eu
      não o conheço, e tu és cega, disse a velha. Há
      aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a
      Morte não tarda aí para as tirar da estufa. Deves saber, que
      toda a criatura humana tem neste sítio uma árvore ou uma
      flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas
      como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração.
      Guia-te por isto, e talvez reconheças as pulsações do
      coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que
      tens ainda de fazer?»
 
 ―Já não tenho
      nada que te dar, disse a pobre mãe. Mas irei até ao fim do
      mundo buscar o que tu quiseres.―«Fora daqui não preciso
      de nada, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros; tu
      sabes que são belos, e agradam-me. Trocá-los-ei pelos meus
      cabelos brancos.»―Não pedes mais nada do que isso?
      disse a mãe. Aí os tens, dou-tos de boa vontade.»
      
 E arrancou os seus magníficos cabelos, que tinham sido
      outrora o seu orgulho de rapariga, recebendo em troca os cabelos curtos e
      inteiramente brancos da velha.
 
 Esta levou-a pela mão
      à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação
      maravilhosa. Viam-se debaixo de campânulas de cristal jacintos mimosíssimos
      ao lado de peónias inchadas e ordinárias. Havia também
      plantas aquáticas, umas cheias de seiva, outras meio murchas, e em
      cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas.
 
 [8]Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas,
      carvalhos e plátanos frondosos; depois num outro sítio
      isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas
      humildes que representavam o género de utilidade das pessoas que
      elas simbolizavam.
 
 Havia ainda grandes arbustos em vasos
      demasiadamente estreitos, que pareciam rebentar; mas viam-se também
      florzitas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra,
      circundadas de musgo, tratadas com esmero delicadíssimo. Tudo isso
      representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a
      China até à Groenlândia.
 
 A velha queria
      mostrar-lhe todas estas coisas misteriosas, mas a mãe impacientada
      pediu-lhe que a levasse ao sítio onde estavam as plantas
      pequeninas; tacteava-as, apalpava-as, para lhes sentir o bater do coração,
      e, depois de ter tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações
      do coração do seu filho.
 
 ―É ele!»
      exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que,
      pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.
 
 ―Não
      lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier,
      que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a
      de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte terá
      medo, porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem
      o seu consentimento.»
 
 Nisto sentiu-se um vento glacial, e
      a mãe adivinhou que era a Morte, que se aproximava.
 
      [9]―Como é que deste com o
      caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o
      conseguiste?―«Sou mãe» respondeu ela. 
 E a
      Morte estendeu a sua mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.
      
 Mas a mãe protegia-o violentamente com ambas as mãos,
      tendo o cuidado de não ferir uma só das pequeninas pétalas.
      Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair
      inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos
      enregelados do Inverno.
 
 ―Não podes nada comigo!»
      disse a Morte.―Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a
      mãe.»―«É verdade, mas eu não faço
      senão aquilo que ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas
      plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar,
      transplanto-as para outros jardins, um dos quais é o grande jardim
      do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém
      sabe o que se lá passa.»
 
 ―Misericórdia!
      misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o
      meu filho, agora que acabo de o encontrar!» Suplicava e gemia. A
      Morte conservava-se impassível; agarrou então
      instantaneamente em duas flores lindíssimas e disse à Morte:
      «Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não
      só esta, mas todas as flores que estão aqui!
 
      ―Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes
      que és desgraçada, e querias ir partir o coração
      de outra mãe!―«Outra mãe!» disse a pobre
      mulher, largando as flores imediatamente. [10]―Toma,
      aqui tens os teus olhos, disse a Morte. Brilhavam tão suavemente
      que os tirei do lago. Não sabia que eram teus. Mete-os nas órbitas,
      e olha para o fundo deste poço; vê o que ias destruir, se
      arrancasses estas flores. Verás passar nos reflexos da água,
      como numa miragem, a sorte destinada a cada uma dessas duas flores, e a
      que teria tido o teu filho, se porventura vivesse.»
 
 Debruçou-se
      no poço, e viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros
      risonhos e deliciosos, e logo depois cenas terríveis de miséria,
      de angústias e de desolação.
 
 ―Nisto
      que eu vejo, disse a mãe aflitíssima, não distingo
      qual era a sorte que Deus destinava ao meu filho.»
 
      ―Não posso dizer-to, respondeu a Morte. Mas repito-te, em
      tudo isto que te apareceu viste o que no mundo havia de suceder ao teu
      filho.»
 
 A mãe desvairada, lançou-se de
      joelhos exclamando: Suplico-te, diz-me: era a sorte infeliz a que lhe
      estava reservada? Não é verdade! Fala! Não me
      respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele
      sofrer desgraças tão horríveis. O meu querido filho!
      Quero-lho mais que à minha vida. As angústias que sejam para
      mim. Leva-o para o reino dos céus. Esquece as minhas lágrimas,
      as minhas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que disse.»
      
 ―Não te compreendo, respondeu a Morte: Queres que te
      entregue o teu filho ou que o leve para a região desconhecida de
      que não posso falar-te!» Então a mãe alucinada,
      convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos e dirigindo-se
      [11]a Deus exclamou: «Não me ouças,
      Senhor, se reclamo no fundo do meu coração contra a tua
      vontade que é sempre justa! Não me atendas meu Deus!»
      
 E deixou cair a cabeça sobre o peito, mergulhada na sua
      agonia dilacerante.
 
 E a Morte arrancou o pequenino açafroeiro,
      e foi transplantá-lo no jardim do paraíso.
 
 
      
 
 [12]
    
      
 
 Era uma vez um rei, que, tendo achado no seu reino algumas
      minas de ouro, empregou a maior parte dos vassalos a extrair o ouro dessas
      minas; e o resultado foi que as terras ficaram por cultivar, e que houve
      uma grande fome no país.
 
 Mas a rainha, que era prudente
      e que amava o povo, mandou fabricar em segredo frangos, pombos, galinhas e
      outras iguarias todas de ouro fino; e quando o rei quis jantar mandou-lhe
      servir essas iguarias de ouro, com que ele ficou todo satisfeito, porque não
      compreendeu ao princípio qual era o sentido da rainha; mas, vendo
      que não lhe traziam mais nada de comer, começou a zangar-se.
      Pediu-lhe então a rainha, que visse bem que o ouro não era
      alimento, e que seria melhor empregar os seus vassalos em cultivar a
      terra, que nunca se cansa de produzir, do que trazê-los nas minas
      à busca do ouro, que não mata a fome nem a sede, e que não
      tem outro valor além da estimação que lhe é
      dada pelos homens, estimação que havia de converter-se em
      desprezo, logo que ouro aparecesse em abundância.
 
 A
      rainha tinha juízo.
 
 
 
 
 [13]
    
      
 
 Há entre vós, meus filhos, índoles
      violentas, que não sabem dominar-se, e que são arrastadas
      pelas primeiras impressões. É uma péssima disposição,
      que é necessário corrigir; dá lugar a disputas, e a
      que se cometam acções, cujo arrependimento chega
      demasiadamente tarde. Citar-vos-ei dois exemplos de que fui testemunha.
      
 Um rapaz, sacudido violentamente na rua por um homem que vinha
      diante dele, volta-se e dá-lhe uma bofetada.
 
 ―Oh!
      senhor! exclamou o outro, mal sabe a pena que vai ter! Bateu num cego!»
      
 Um homem ainda novo montado num burro, atravessava uma aldeia, e uns
      camponeses grosseiros começaram a apupá-lo e a bater no
      burro, para o fazer correr. O homem apeou-se, foi direito a eles, e,
      mostrando-lhes a sua perna aleijada, disse-lhes: «Se soubésseis
      que eu era coxo, não teríeis sido tão covardes.»
      
 Os camponeses, envergonhados, coraram, afastando-se sem pronunciar
      uma palavra.
 
 Que vos parece estas duas lições?
      Estou convencido que aproveitaram a quem as recebeu.
 
 
      
 
 [14]
    
      
 
 Ouvi com atenção esta pequenina história!
      
 No campo, junto da estrada real, havia uma casinha muito bonita, que
      deveis ter visto muitas vezes. Há na frente um jardinzinho com
      flores, rodeado por uma sebe verdejante. Ali perto nas bordas do valado,
      no meio da erva espessa, floria um pequenino malmequer. Desabrochava a
      olhos vistos, graças ao sol, que repartia igualmente a sua luz
      tanto por ele como pelas grandes e maravilhosas flores do jardim. Uma bela
      manhã, já inteiramente aberto, com as folhinhas alvas e
      brilhantes, parecia um sol em miniatura circundado dos seus raios. Pouco
      se lhe dava que o vissem no meio da erva e não fizessem caso dele,
      pobre florinha insignificante. Vivia satisfeito, aspirando deliciosamente
      o calor do sol, e ouvindo o canto da cotovia, que se perdia nos ares.
      
 Nesse dia o pequeno malmequer, apesar de ser numa segunda-feira,
      sentia-se tão feliz como se fosse um domingo. Enquanto as crianças
      sentadas nos bancos da escola estudavam a lição, ele,
      sentado na haste verdejante, estudava na formosura da natureza a bondade
      de Deus, e tudo o que [15]sentia
      misteriosamente, em silêncio, julgava ouvi-lo traduzido com admirável
      nitidez nas canções alegres da cotovia. Por isso pôs-se
      a olhar com uma espécie de respeito, mas sem inveja, para essa
      avezinha feliz que cantava e voava.
 
 «Eu vejo e oiço,
      pensou o malmequer; o sol aquece-me e o vento acaricia-me. Oh! não
      tenho razão de me queixar.»
 
 Dentro da sebe havia
      muitas flores altivas, aristocráticas; quanto menos aroma tinham,
      mais orgulhosas se aprumavam. As dálias inchavam-se para parecerem
      maiores do que as rosas; mas não é o tamanho que faz a rosa.
      As tulipas brilhavam pela beleza das suas cores, pavoneando-se
      pretensiosamente. Não se dignavam de lançar um olhar para o
      pequeno malmequer, enquanto que o pobrezinho admirava-as, exclamando:
      «Como são ricas e bonitas! A cotovia irá certamente
      visitá-las. Graças a Deus, poderei assistir a este belo
      espectáculo.» E no mesmo instante a cotovia dirigiu o seu
      voo, não para as dálias e tulipas, mas para a relva, junto
      do pobre malmequer, que morto de alegria não sabia o que havia de
      pensar.
 
 O passarinho pôs-se a saltitar à roda
      dele, cantando: «Como a erva é macia! oh! que encantadora
      florinha, com um coração de oiro, vestida de prata!»
      
 Não se pode fazer ideia da felicidade do malmequer. A ave
      acariciou-o com o bico, cantou outra vez diante dele, e perdeu-se depois
      no azul do firmamento. Durante mais de um quarto de hora não pôde
      o malmequer reprimir a sua comoção. Meio envergonhado, mas
      todo contente, olhou [16]para as outras
      flores do jardim, que, como testemunhas da honra que acaba de receber,
      deviam avaliar muito bem a sua alegria natural; mas as tulipas estavam
      cada vez mais aprumadas; a sua haste vermelha e pontiaguda manifestava o
      despeito. As dálias tinham a cabeça toda inchada. Se elas
      pudessem falar, teriam dito coisas bem desagradáveis ao pobre
      malmequer. A florinha viu isto, e ficou triste.
 
 Passados alguns
      momentos, entrou no jardim uma rapariguita com uma grande faca afiada e
      brilhante, aproximou-se das tulipas, e cortou-as uma a uma.
 
      «Que desgraça! disse o malmequer suspirando; é horrível;
      foram-se todas.»
 
 E enquanto a rapariguinha levava as
      tulipas, o malmequer alegrara-se por ser simplesmente uma pequenina flor
      no meio da erva. Apreciando reconhecido a bondade de Deus, cerrou ao cair
      da tarde as suas folhas, adormeceu, e sonhou toda a noite com o sol e com
      a cotovia.
 
 No dia seguinte de manhã, assim que o
      malmequer abriu as suas folhas ao ar e à luz, reconheceu a voz do
      passarinho, mas o seu canto era triste, muitíssimo triste. A pobre
      cotovia tinha boas razões para se afligir: haviam-na agarrado e
      metido numa gaiola, suspensa entre uma janela aberta. Cantava a alegria da
      liberdade, a beleza dos campos e as suas antigas viagens através do
      espaço ilimitado.
 
 O pequenino malmequer tinha boa
      vontade de lhe acudir: mas como? Era difícil. A compaixão
      pelo pobre passarinho prisioneiro, fez-lhe esquecer [17]inteiramente
      as belezas que o cercavam, o doce calor do sol e a alvura resplandecente
      das suas próprias folhas.
 
 Nisto dois rapazinhos entraram
      no jardim. O mais velho trazia na mão uma faca comprida e afiada
      como a da pequerrucha, que tinha cortado as tulipas. Encaminharam-se para
      o malmequer, que não podia compreender o que desejavam.
 
      «Podemos arrancar daqui um pedaço de relva para a cotovia,
      disse um dos rapazes, e começou a fazer um quadrado profundo
      à volta da florinha.
 
 ―«Arranca a flor, disse
      o outro.»
 
 A estas palavras o malmequer estremeceu de
      terror. Arrancarem-no era morrer; e nunca tinha abençoado tanto a
      existência, como no momento em que esperava entrar com a relva na
      gaiola da cotovia.
 
 «Não; deixemo-la, disse o mais
      velho. Está aí muito bem.»
 
 Foi por
      conseguinte poupado, e entrou na gaiola da cotovia.
 
 O pobre
      passarinho, queixando-se amargamente do seu cativeiro, batia com as asas
      nos arames da gaiola. O malmequer não podia, apesar dos seus
      desejos, articular-lhe uma palavra de consolação.
 
      Passou-se assim toda a manhã.
 
 «Já não
      tenho água, exclamou a prisioneira. Saiu toda a gente, sem me
      deixarem ao menos uma gota de água. A garganta queima-me, tenho uma
      febre terrível, sinto-me abafada! Ai! Não há remédio
      senão morrer, longe do sol esplêndido, longe da fresca
      verdura e de todas as magnificências da criação!»
      
 [18]Depois enterrou o bico na relva húmida
      para se refrescar um pouco. Viu então o malmequer; fez-lhe um sinal
      de cabeça amigável, e disse-lhe, afagando-o: «Também
      tu, pobre florinha, morrerás aqui! Em vez do mundo inteiro, que eu
      tinha à minha disposição, deram-me um pedacito de
      relva, e a ti só por única companhia. Cada pezinho de relva
      substitui para mim uma árvore, e cada uma das tuas folhas brancas,
      uma flor odorífera. Ah! como me fazes recordar de todas as coisas
      que perdi!
 
 ―Se eu pudesse consolá-la! pensava o
      malmequer, incapaz de fazer o mínimo movimento.
 
 Contudo
      o perfume que ele exalava, tornou-se mais forte que de costume; a cotovia
      sentiu-o, e, apesar da sede devoradora que a obrigava a arrancar a erva,
      teve todo o cuidado em não tocar nem sequer de leve na flor.
      
 Caiu a noite; não estava ali ninguém, para trazer uma
      gota de água à desditosa cotovia; Estendeu então as
      suas belas asas, sacudindo-as convulsivamente, e pôs-se a cantar uma
      cançãozinha melancólica; a sua cabecinha inclinou-se
      para a flor, e o seu coração quebrado de desejos e de angústias
      cessou de bater. Vendo este triste espectáculo, o malmequer não
      pôde como na véspera fechar as suas folhas para dormir;
      curvou-se para o chão, doente de tristeza.
 
 Os rapazitos
      só voltaram no dia seguinte, e, vendo o passarinho morto,
      rebentaram-lhe as lágrimas e abriram uma cova. Meteram o cadáver
      dentro de uma caixa vermelha, lindíssima, fizeram-lhe um enterro de
      príncipe, e cobriram o túmulo com folhas de rosas.
      
 [19]Pobre passarinho! Enquanto vivia e
      cantava, esqueceram-se dele e deixaram-no morrer de fome na gaiola; depois
      de morto é que o choraram e lhe fizeram honrarias pomposíssimas.
      
 A relva e o malmequer lançaram-nas para a poeira da estrada;
      daquele que com tanta ternura tinha amado a cotovia, ninguém se
      lembrou.
 
 
 
 
 [20]
    
      
 
 Um dia, passando na estrada, ouvi dois rapazitos que falavam
      muito alto: «Não, dizia um com voz enérgica, não
      quero.» Parei e perguntei-lhe:―O que é que tu não
      queres, meu rapaz?―«Não quero dizer à mamã
      que venho da escola, porque é mentira. Sei que me há-de
      ralhar, mas antes quero que me ralhe do que mentir.»―E tens
      razão, disse-lhe eu. És um rapaz como se quer.»
      Apertei-lhe a mão, enquanto que o outro pequeno, que lhe
      aconselhava que se desculpasse mentindo, ia-se embora todo envergonhado.
      
 Daí a alguns meses, passando pela mesma aldeia e tendo de
      falar com o professor, entrei na escola, onde reconheci imediatamente os
      meus dois pequenos; o que não quis mentir, sorria-me, enquanto que
      o outro, vendo-me, baixou os olhos. Ao despedir-me interroguei o mestre
      sobre os dois alunos: Oh! disse-me ele, falando do primeiro, é um
      magnífico estudante, um pouco teimoso, mas honrado, sincero, sempre
      pronto a confessar as suas faltas e o que é ainda melhor, a repará-las.
      O outro pelo contrário, é mentiroso, covarde e incorrigível.»―Não
      me espanto, disse eu, já tinha tirado o horóscopo destas
      duas crianças; e contei-lhe o que tinha ouvido.
 
 
      
 
 [21]
    
      
 
 Piloto era o mais inteligente e o mais afectuoso dos cães,
      e o infatigável companheiro dos brinquedos das crianças da
      quinta.
 
 Fazia gosto vê-lo atirar-se ao tanque a agarrar o
      pau, que João lhe lançava o mais longe que podia; pegava
      nele, metia-o na boca e trazia-o à margem, com grande alegria do
      pequerrucho e da sua irmã Joaninha.
 
 Esta brincadeira
      recomeçava vinte vezes sem cansar nunca a paciência do
      Piloto. Depois eram corridas, festas, gargalhadas, saltos, até que
      o assobio do criado da quinta chamava o fiel animal às suas obrigações:
      partia então como um raio, para escoltar as vacas, que levavam aos
      pastos, e impedi-las de entrar no lameiro do vizinho.
 
 Quando o
      hortelão ia vender os legumes ao mercado, era o Piloto o guarda da
      carroça; e muito atrevido seria quem saltasse à noite a
      parede da quinta.
 
 Uma vez deu prova de uma extraordinária
      sagacidade; um jornaleiro, que se empregava muitas vezes em levar sacos de
      trigo da quinta para casa, tentou de noite roubar um saco.
 
      Piloto, que o conhecia, não fez a menor demonstração
      de hostilidade em quanto o homem seguiu o [22]caminho
      da quinta, mas, desde que se afastou tomando por outra estrada, o guarda
      vigilante agarrou-o pela blusa sem o largar.
 
 Era como se
      dissesse: «Onde vais tu com o trigo de meu dono?»
 
 O
      ladrão quis pôr então outra vez o saco donde o tinha
      tirado; Piloto não consentiu, e teve-o em guarda, sem o morder nem
      o ferir, até de manhã; o quinteiro foi dar com ele nesta difícil
      posição, repreendeu-o vivamente, e despediu-o sem divulgar o
      caso para o não desonrar.
 
 Mas o homem ficou com ódio
      ao cão, e muito tempo depois, aproveitando a ausência do
      quinteiro e de seus filhos, chamou o Piloto, que correu para ele sem
      desconfiança; atou-lhe uma corda ao pescoço e arrastou-o até
      à margem do ribeiro.
 
 Atou uma grande pedra à
      outra extremidade da corda e levantando o animal atirou-o à
      água; mas arrastado ele próprio com o peso e com o esforço,
      caiu também.
 
 Como não sabia nadar, teria sido
      despedaçado pela roda do moinho, se o corajoso Piloto, obedecendo
      ao seu instinto de salvador e desembaraçando-se da pedra mal atada,
      não tivesse mergulhado duas vezes e trazido para terra o seu mortal
      inimigo.
 
 Este, que estava quase desmaiado, compreendeu quando
      voltou a si, que o cão que ele tinha querido afogar, lhe salvara a
      vida.
 
 Teve vergonha de seu acto miserável; e desde esse
      dia, violentou-se a si mesmo e combateu as suas más inclinações.
      
 O exemplo do cão corrigiu o homem.
 
 
 
      
 [23]
    
      
 
 Martinho era um rapazito, que ganhava a sua vida a fazer
      recados; um dia, voltando de uma aldeia muito distante da sua, achou-se
      cansado e deitou-se debaixo de uma árvore, à porta de uma
      estalagem, junto da estrada. Estava comendo um bocado de pão que
      tinha trazido para jantar, quando chegou uma bela carruagem em que vinha
      um fidalguinho, com o seu preceptor. O estalajadeiro correu imediatamente
      e perguntou aos viajantes se queriam apear-se, mas responderam-lhe que não
      tinham tempo, e pediram-lhe que lhes trouxesse um frango assado e uma
      garrafa de vinho.
 
 Martinho estava pasmado a olhar para eles;
      olhou depois para a sua côdea de pão, para a sua velha
      jaqueta, para o seu chapéu todo roto, e suspirando exclamou
      baixinho: Oh! se eu fosse aquele menino tão rico, em vez do desgraçado
      Martinho! Que fortuna se ele estivesse aqui, e eu dentro daquela
      carruagem!» O preceptor ouviu casualmente o que dizia Martinho e
      repetiu-o ao seu aluno, que, lançando a cabeça fora da
      carruagem, chamou Martinho com a mão.
 
 ―Ficarias
      muito contente, não é verdade, meu [24]rapaz,
      podendo trocar a minha sorte pela tua?»―Peço que me
      desculpe senhor, replicou Martinho corando, o que eu disse não foi
      por mal.»―Não estou zangado contigo, replicou o
      fidalguinho, pelo contrário, desejo fazer a troca.»
      
 ―Oh! está a divertir-se comigo! tornou Martinho, ninguém
      quereria estar no meu lugar, quanto mais um belo e rico menino como o
      senhor. Ando muitas léguas por dia, como pão seco e batatas,
      enquanto que o senhor anda numa carruagem, pode comer frangos e beber
      vinho.»―Pois bem, volveu o fidalguinho, se me queres dar tudo
      aquilo que tens e que eu não tenho, dou-te em troca de boa vontade
      tudo o que possuo.» Martinho ficou com os olhos espantados, sem
      saber o que havia de dizer; mas o preceptor continuou: «Aceitas a
      troca?»―Ora essa! exclamou Martinho, ainda mo pergunta! Oh!
      como toda a gente da aldeia vai ficar assombrada de me ver entrar nesta
      bela carruagem!» E Martinho desatou a rir com a ideia da entrada
      triunfante na sua aldeia.
 
 O fidalguinho chamou os criados, que
      abriram a portinhola e o ajudaram a descer. Mas qual foi a surpresa de
      Martinho, vendo que ele tinha uma perna de pau e que a outra era tão
      fraca, que se via obrigado a andar em duas muletas: depois, olhando para
      ele de mais perto, Martinho observou que era muito pálido e que
      tinha cara de doente.
 
 Sorriu para o rapazito com ar benévolo,
      e disse-lhe:―Então sempre desejas trocar? Querias porventura,
      se pudesses, deixar as tuas pernas valentes e as tuas faces coradas, pelo
      prazer de ter [25]uma carruagem e andar bem
      vestido?»―Oh! não, por coisa nenhuma! replicou
      Martinho.―«Eu, disse o fidalguinho, de boa vontade seria
      pobre, se tivesse saúde. Mas, como Deus quis que fosse aleijado e
      doente, sofro os meus males com paciência e faço por ser
      alegre, dando graças a Deus pelos bens que me concedeu na sua
      infinita misericórdia.
 
 «Faz o mesmo, meu
      amiguinho, e lembra-te que, se és pobre e comes mal, tens força
      e saúde, coisas que valem mais que uma carruagem, e que não
      podem comprar-se com dinheiro.
 
 
 
 
 [26]
    
      
 
 Tinha o coração duro, e não dava esmolas.
      Foi-se confessar uma vez, e o confessor deu-lhe por penitência rezar
      sete vezes o Padre Nosso.
 
 «Não o sei, e nunca o
      pude aprender, respondeu o aldeão.» 
 «Pois nesse
      caso, tornou o confessor, imponho-te por penitência dar a crédito
      um alqueire de trigo a todas as pessoas que to forem pedir da minha parte.»
      
 No dia seguinte de manhã apresentou-se o primeiro pobre.
      
 «Como te chamas? perguntou-lhe o camponês.
 
      «Padre―Nosso―Que―Estais―No―Céu,
      respondeu o pobre.»
 
 «E o teu apelido?»
      
 «Seja―Santificado―O―Vosso―Nome.»
      
 E o pobre foi-se embora com o seu alqueire de trigo.
 
 Ao
      outro dia chega segundo pobre.
 
 «Como te chamas?
      
 «Venha―A―Nós―O―Vosso―Reino.»
      
 «E o teu apelido?»
 
 «Seja―Feita―A―Vossa―Vontade.»
      
 [27]E partiu com o seu alqueire de
      trigo.
 
 Veio terceiro pobre.
 
 «Como te chamas?»
      
 «Assim―Na―Terra―Como―No―Céu.»
      
 «E o teu apelido?»
 
 «Dai-nos―Hoje―O―Pão―Nosso―De―Cada―Dia.»
      
 E levou o seu alqueire.
 
 Vieram ainda dois pobres
      sucessivamente, e passou-se tudo da mesma forma até chegar ao Amen.
      
 Pouco tempo depois o confessor encontrou o aldeão.
 
      «Então já sabes o Padre Nosso?»
 
      «Não, sr. cura, sei só os nomes e apelidos dos pobres
      a quem emprestei o meu trigo.»
 
 «Quais são?
      tornou o padre.»
 
 E o aldeão enumerou-lhos a
      seguir, e pela ordem porque cada um se tinha apresentado.
 
      «Já vês, disse o confessor, que não era muito
      difícil aprender o Padre Nosso, porque já o sabes
      perfeitamente.»
 
 
 
 
 [28]
    
      
 
 Dois habitantes da mesma cidade exerciam nela a mesma indústria,
      mas com resultados bem diversos; um enriquecia-se e o outro arruinava-se,
      o que não era de espantar, porque o primeiro zelava os seus negócios
      com uma actividade infatigável, enquanto que o segundo, entregue
      inteiramente aos seus prazeres, encarregava os estranhos da direcção
      da sua casa.
 
 «Explica-me, disse um dia este último
      ao seu colega, qual é a razão porque a sorte nos trata de um
      modo tão diferente? Vendemos as mesmas mercadorias, a minha loja
      está tão bem situada como a tua, e apesar disso, enquanto tu
      ganhas, eu não faço senão perder. E não
      é porque eu seja estroina; não bebo, nem jogo. Já
      tenho pensado algumas vezes se não terás tu por acaso algum
      precioso talismã.»
 
 «Efectivamente, respondeu
      o outro, herdei de meu pai um talismã de uma virtude incomparável.
      Trago-o ao pescoço, e ando assim com ele todo o dia por toda a
      casa, do celeiro para a adega, e da adega para o celeiro. E o caso
      é que tudo me corre perfeitamente.»
 
 [29]«Olé meu querido colega,
      empresta-me pelo amor de Deus essa relíquia preciosa de que tanto
      necessito; podes ter a certeza de que ta restituo.»
 
      «Pois vem buscá-la amanhã de manhã.»
      
 Quando ao outro dia foi procurar o seu generoso concorrente,
      apresentou-lhe este uma avelã, através da qual tinha passado
      um fio de seda.
 
 O nosso homem pô-la imediatamente ao
      pescoço, e começou a correr toda a casa com o talismã.
      Observou então a completa desordem que por toda a parte ali havia.
      Na adega faltava-lhe vinho, cerveja e azeite; na cozinha o pão, a
      carne e os legumes; no celeiro, o milho, o trigo, o feijão; na
      estribaria, o feno e a aveia, roubados das manjedouras dos cavalos; viu,
      finalmente, como os seus livros e registros estavam mal escriturados; viu
      tudo isto, e que era necessário dar-lhe remédio,
      compreendendo que o dono da casa nunca pode ser substituído por
      terceira pessoa na direcção dos seus negócios.
      
 Passados alguns dias foi entregar ao dono o precioso talismã,
      agradecendo-lhe duplamente, em primeiro lugar, o seu bom conselho, e em
      segundo lugar, a maneira delicada porque lho tinha dado.
 
 
      
 
 [30]
    
      
 
 «Mamã, nem todas as crianças que morrem vão
      para o Paraíso. O outro dia vi levar para o cemitério um
      menino que tinha morrido; o seu papá e as suas duas irmãzinhas
      acompanhavam o caixão, e choravam tanto que me fazia pena. Iam a
      chorar porque aquele menino tinha sido mau, não é verdade?»
      
 «Não; naturalmente foi sempre bom, e a sua alma,
      enquanto choravam seus pais e suas irmãs, já estava vivendo
      feliz no Paraíso.»
 
 «A alma? mamã; não
      sei o que é; não compreendo bem.»
 
 «Maria,
      acabas de me dizer que tiveste pena de ver chorar as duas pequerruchas.»
      
 «Tive sim, mamã, tive muita pena.»
 
      «Ora bem, o que é que no teu corpo estava desconsolado e
      triste? eram os braços?»
 
 «Não, mamã.»
      
 «Eram as orelhas?»
 
 «Oh! não mamã,
      era cá dentro.»
 
 «Esse lá
      dentro, Maria, é a tua alma que se alegra ou se entristece, que
      te repreende quando fazes o mal, e que está satisfeita quando
      praticas o bem.
 
 
 
 
 [31]
    
      
 
 Alberto tinha seis anos. Era filho de um jardineiro. Via seu
      pai e seus irmãos, que eram activos e laboriosos, plantar árvores
      e fazer sementeiras, que nasciam, cresciam e davam fruto. Tinha visto um
      único feijão produzir cem feijões e muitas vezes
      mais, e de uma talhada de batata nascerem quarenta batatas magníficas;
      sabia que a terra pagava com juros exorbitantes o que lhe emprestavam. Um
      dia achou uma libra no quarto do pai, e foi enterrá-la
      imediatamente no seu jardinzinho. «Há-de nascer uma árvore,
      dizia ele consigo, que dará libras como uma cerejeira dá
      cerejas, e irei entregá-las ao papá, que ficará muito
      contente.» Todas as manhãs ia ver se a libra tinha nascido,
      mas não rebentava nada. Entretanto o pai procurava a libra por toda
      a parte. Por fim perguntou ao Albertinho se a tinha visto.
 
      «Vi papá; achei-a e fui semeá-la.»
 
      «Como, semeá-la? doido! julgas talvez que vai nascer como uma
      couve?»
 
 «Mas, papá, ouvi dizer que o oiro se
      encontrava na terra.»
 
 «É verdade, mas não
      nasce como uma semente; o oiro não tem vida.»
 
      [32]Desenterrou-se a libra, e Alberto foi
      castigado por dispor do que lhe não pertencia.
 
 Há
      contudo, meus filhos, uma maneira de semear o oiro, fazendo-lhe produzir
      os mais belos frutos que existem no mundo. Quereis saber como é?
      É dando-o aos pobres. Faz-se no Paraíso a colheita dessa
      sementeira.
 
 
 
 
 [33]
    
      
 
 Disse Deus na Primavera: «Ponham a mesa às
      lagartas!» E a cerejeira cobriu-se imediatamente de folhas, milhões
      de folhas, fresquinhas e verdejantes.
 
 A lagarta, que estava
      dormindo dentro de casa, acordou, espreguiçou-se, abriu a boca,
      esfregou os olhos e pôs-se a comer tranquilamente as folhinhas
      tenras, dizendo: «Não se pode a gente despegar delas. Quem
      é que me arranjou este banquete?»
 
 Então
      Deus disse de novo: «Ponham a mesa às abelhas!» E a
      cerejeira cobriu-se imediatamente de flores, milhões de flores
      delicadas e brancas.
 
 E a abelha matinal aos primeiros raios da
      aurora pousou sobre elas, dizendo: «Vamos tomar o nosso café;
      e que chávenas tão bonitas em que o deitaram!»
      
 Provou com a linguita, exclamando: «Que deliciosa bebida! Não
      pouparam o açúcar!»
 
 No Verão disse
      Deus: «Ponham a mesa aos passarinhos!» E a cerejeira cobriu-se
      de mil frutos apetitosos e vermelhos.
 
 [34]«Ah!
      ah! exclamaram os passarinhos, foi em boa ocasião; temos apetite, e
      isto dar-nos-á novas forças para podermos cantar uma nova
      canção.» No Outono disse Deus: «Levantai a mesa,
      já estão satisfeitos.» E o vento frio das montanhas
      começou a soprar, e fez estremecer a árvore.
 
 As
      folhas tornaram-se amarelas e avermelhadas, caíram uma a uma, e o
      vento que as lançou ao chão erguia-as novamente, fazendo-as
      esvoaçar.
 
 Chegou o Inverno e disse Deus: «Cobri o
      resto!» E os turbilhões dos ventos trouxeram a neve, sob cuja
      mortalha tudo dorme e descansa.
 
 
 
 
 [35]
    
      
 
 Era uma vez uma família de gigantes, que viviam num
      castelo na montanha: um dos gigantes tinha uma filha de seis anos, da
      altura dum álamo. Era curiosa e andava com vontade de descer
      à planície a ver o que faziam lá em baixo os homens,
      que de cima do monte lhe pareciam anões. Um belo dia, em que seu
      pai o gigante tinha ido à caça e sua mãe estava
      dormindo, a jovem giganta desatou a correr para um campo, onde os
      jornaleiros trabalhavam. Parou surpreendida a ver a charrua e os
      lavradores, coisas inteiramente novas para ela. «Oh! que lindos
      brinquedos!» exclamou. Abaixou-se e estendeu por terra o avental,
      que quase que cobriu o campo. Lançou-lhe dentro os homens, os
      cavalos, a charrua; de dois passos tornou a subir a montanha, e entrou no
      castelo, onde seu pai estava a jantar.
 
 ―Que trazes aí,
      minha filha?» perguntou ele.
 
 ―Olhe, disse ela,
      abrindo o avental, que lindos brinquedos. São os mais bonitos que
      tenho visto.»
 
 E pô-los em cima da mesa, a um e um,―os
      cavalos, a charrua e os trabalhadores, que estavam [36]todos
      espantados, como formigas a quem tivessem transportado dum formigueiro
      para um salão. A gigantinha pôs-se a bater as palmas e a rir
      com uma alegria doida, mas o gigante fez-se sério e franziu o
      sobrolho. «Fizeste mal, disse-lhe ele. Isso não são
      brinquedos, mas coisas e pessoas que devem estimar-se e respeitar-se. Mete
      tudo isso com cuidado no teu avental, e põe-no imediatamente onde o
      achaste; porque fica sabendo que os gigantes da montanha, morreriam de
      fome, se os anões da planície deixassem de lavrar a terra e
      de semear o trigo.
 
 
 
 
 [37]
    
      
 
 Quando morre uma criança, desce um anjo do céu,
      toma-a nos braços, e desdobrando as asas imaculadas, voa por cima
      de todos os sítios que ela amara durante a sua pequenina existência;
      o anjo abaixa-se de quando em quando para colher flores, que leva a Deus,
      para que floresçam no paraíso ainda mais belas do que tinham
      sido na terra. Deus recebe todas as flores, escolhe uma delas, toca-a com
      os lábios, e a flor escolhida, adquirindo voz imediatamente, começa
      a cantar os coros maviosos dos bem-aventurados. Ora escutai o que disse o
      anjo a uma criança morta, que o estava ouvindo como num sonho.
      Pairaram primeiro sobre a casa em que a criança brincara, e depois
      sobre jardins deliciosos, cobertos de flores.
 
 «Qual
      é a flor que desejas para plantar no paraíso?»
      perguntou o anjo.
 
 Havia nesse jardim uma roseira que tinha sido
      direita, vigorosa, magnífica; mas quebraram-lhe o pé, e
      todos os seus ramos cheios de botõezinhos lindíssimos
      pendiam estiolados para o chão.
 
 «Pobre roseira!
      disse a criança ao anjo; vamos buscá-la para que possa
      reflorir no paraíso.»
 
 [38]O
      anjo foi buscá-la, e abraçou a criança. Colheram
      muitas flores brilhantes, boninas humildes e violetas silvestres.
      
 A colheita estava terminada, e contudo não voavam ainda para
      Deus. Caiu a noite silenciosa, e a criança e o seu guia Divino
      andavam ainda por cima da grande cidade. Atravessaram uma das ruas mais
      estreitas, cheia de cacos de louça, de vidros partidos, de
      farrapos, de toda a casta de imundície. Entre estes destroços
      distinguiu o anjo um vaso de flores com a terra pelo chão, onde
      pendiam as longas raízes duma flor dos campos, já murcha, e
      que parecia não poder reverdecer: tinham-na atirado para a rua como
      inútil e morta.
 
 «Vale a pena levantá-la
      disse o anjo; levemo-la, e pelo caminho, voando, te contarei a história
      da florinha. Lá ao fundo, lá ao fundo, naquela rua estreita
      e tortuosa, morava um pequerrucho, uma criança miserável e
      doente. Quando se sentia melhor, o mais que podia conseguir era passear
      com a ajuda das muletas ao longo de seu pequenino quarto. Em certos dias
      de Verão os raios do sol visitavam-lhe a alcova, durante meia hora.
      Então a criança sentada à janela, aquecida pelo sol,
      sem o cansaço do andar, imaginava-se passeando; não conhecia
      da floresta, da fresca verdura da primavera, senão o ramo de faia,
      que uma vez o filho do vizinho tinha colhido para ele. Suspendia por cima
      da cabeça o ramo verdejante, e, supondo-se debaixo das árvores
      abrigadas do sol, sonhava com o doce canto dos passarinhos. Um dia o filho
      do vizinho trouxe-lhe flores do campo, e por acaso entre elas apareceu uma
      que tinha ainda raízes; [39]o
      pequerrucho plantou-a num vaso, e pô-lo à janela, junto da
      cama. A flor plantada por mão abençoada, cresceu, tornou-se
      grande, e todos os anos dava novas flores. Era o seu jardinzinho, o seu
      único tesouro neste mundo; regava-a, tratava-a, adorava-a;
      fazia-lhe aproveitar os raios do sol até ao último. A flor
      aparecia-lhe em sonhos, porque era para ele que floria, que espalhava o
      seu aroma e ostentava as suas cores; quando se sentiu morrer foi para ela
      que se voltou.
 
 «Faz hoje um ano que esse pequerrucho
      habita no paraíso; a sua querida flor, esquecida à janela
      desde então, murchou, estiolou-se e atiraram-na à rua
      finalmente. E contudo esta flor quase seca é o tesouro do nosso
      ramalhete. Deu mais prazer e alegria do que todos os canteiros dum jardim
      realengo.»
 
 «Como sabes tu isso?» perguntou a
      criança, que o anjo levava para o céu.
 
 ―Sei-o,
      respondeu o anjo, porque era eu o pequenino doente que andava em muletas;
      como não havia de eu reconhecer a minha flor bem amada!»
      
 A criança abriu os olhos, e viu a radiosa figura do anjo
      quando entravam no céu onde tudo era alegria e felicidade. Deus
      pegou nas flores, levou-as ao coração, mas a que ele beijou
      foi a florinha silvestre, desprezada e murcha: a flor adquiriu voz
      imediatamente, pôs-se a cantar com as almas que rodeiam o Criador,
      umas junto dele, outras ao longe, formando círculos que vão
      aumentando sucessivamente, multiplicando-se até ao infinito,
      povoados de [40]seres inteiramente felizes,
      cantando todos harmoniosamente―desde a criança abençoada
      até à humilde florinha do campo, levantada do lodo, dentre
      os tristes despojos da rua sombria e tortuosa.
 
 
 
      
 [41]
    
      
 
 Um grande fidalgo, que se tinha perdido numa floresta, foi dar
      de noite à choupana de um pobre carvoeiro. Como este ainda não
      tinha chegado, foi a mulher que recebeu o importante personagem. Acolheu-o
      o melhor que pôde, desculpando-se da miserável hospitalidade
      que lhe ia dar, porque eram batatas cozidas a única coisa que lhe
      poderia oferecer; cama não a tinha, por conseguinte dormiria sobre
      a palha. Mas o estrangeiro estava morto de fome e de fadiga; as batatas
      souberam-lhe mais do que faisões, e dormiu melhor em cima da palha
      do que num leito de príncipes. Ao outro dia pela manhã disse
      isto mesmo à pobre mulher, gratificando-a ao despedir-se com uma
      moeda de ouro. Mas, como o desconhecido lhe tinha dito que a guardasse
      como uma pequena lembrança, a boa camponesa julgou que seria uma
      medalha, e sentiu que não tivesse um buraquito para a trazer ao
      pescoço. Quando o carvoeiro chegou a casa, contou-lhe logo o que
      lhe tinha acontecido, mostrando-lhe a moeda preciosa. O carvoeiro examinou
      os cunhos e o valor da moeda de ouro, e disse para a mulher:
 
      [42]«Esse forasteiro era nada mais nada
      menos do que o nosso príncipe!
 
 E o bom do homem não
      podia conter-se de alegria, por sua alteza ter achado as suas batatas
      melhores do que faisões.
 
 «É necessário
      confessar, disse ele com um ar triunfante, que não há talvez
      no mundo um terreno mais favorável do que este para a cultura das
      batatas; hei-de lhe levar um cesto delas, já que as acha tão
      boas.
 
 E partiu imediatamente para o palácio com uma
      provisão de batatas escolhidas.
 
 Os lacaios e as
      sentinelas ao princípio não o queriam deixar entrar; mas
      insistiu energicamente, dizendo que não vinha pedir nada, e que
      pelo contrário vinha trazer alguma coisa.
 
 Foi, pois,
      introduzido na sala da audiência.
 
 «Meu senhor,
      disse ele ao príncipe: Vossa alteza dignou-se recentemente pedir
      hospitalidade a minha mulher, e dar-lhe uma peça de ouro, em troca
      duma enxerga miserável e de um prato de batatas cosidas. Era pagar
      demasiadamente, apesar de serdes um príncipe muito rico e poderoso.
      Eis o motivo porque eu venho trazer ainda a vossa alteza um cestito das
      batatas, que vos souberam melhor do que os vossos faisões.
      Dignai-vos aceitá-las, e, se nos fizerdes de novo a honra de ser
      nosso hospede, lá as encontrareis sempre ao vosso dispor.»
      
 A honrada simplicidade do camponês agradou ao príncipe,
      e, como estava num momento de bom humor, fez-lhe doação de
      uma quinta com trinta jeiras de terra.
 
 [43]Ora
      o carvoeiro tinha um irmão muito rico, mas invejoso e avarento,
      que, sabendo da fortuna do irmão mais novo, disse consigo: «Porque
      não me há de suceder a mim outro tanto? O príncipe
      gosta do meu cavalo, pelo qual lhe pedi sessenta libras, que ele me
      recusou. Vou-lhe fazer presente dele: se deu ao João uma quinta com
      trinta jeiras de terra, simplesmente por um cesto de batatas, a mim com
      certeza me há de recompensar ainda mais generosamente.»
      
 Tirou o cavalo da estrebaria e levou-o para defronte das portas do
      palácio; recomendou ao criado que o segurasse, e, atravessando com
      ar altivo as alas dos lacaios, penetrou na sala da audiência.
      
 «Ouvi dizer, disse ele, que vossa alteza gosta do meu cavalo;
      não tenho querido trocá-lo a dinheiro, mas dignai-vos
      permitir-me que vo-lo ofereça.»
 
 O príncipe
      viu imediatamente onde o nosso homem queria chegar, e disse consigo:
      «Deixa estar, tratante, que te vou dar a paga que mereces:
      
 Depois dirigindo-se a ele:
 
 «Aceito a tua dádiva,
      mas não sei como agradecer-ta condignamente. Oh! espera um pouco:
      Eis aqui um cesto de batatas mais saborosas do que faisões.
      Custaram-me trinta jeiras de terra. Parece-me que é um bom preço
      para um cavalo, que eu poderia ter comprado por sessenta libras.»
      
 E entregando-lhe o cesto, mandou-o embora.
 
 
 
      
 [44]
    
      
 
 Era uma vez um pinheiro, que não estava contente com a
      sua sorte. «Oh! dizia ele, como são horrorosas estas linhas
      uniformes de agulhas verdes, que se estendem ao longo dos meus ramos! Sou
      um pouco mais orgulhoso que os meus vizinhos, e sinto que fui feito para
      andar vestido de outro modo. Ah! se as minhas folhas fossem de oiro!»
      
 O Génio da montanha ouviu-o, e no dia seguinte pela manhã
      acordou o pinheiro com folhas de oiro. Ficou radiante de alegria, e
      admirou-se, pavoneou-se todo, olhando com altivez para os outros
      pinheiros, que, mais sensatos do que ele, não invejavam a sua rápida
      fortuna. À noite passou por ali um judeu, arrancou-lhe todas as
      folhas, meteu-as num saco, e foi-se embora, deixando-o inteiramente nu dos
      pés à cabeça.
 
 «Oh! disse ele, que
      doido que eu fui! não me tinha lembrado da cobiça dos
      homens. Fiquei completamente despido. Não há agora em toda a
      floresta uma planta tão pobre como eu. Fiz mal em pedir folhas de
      oiro; o oiro atrai as ambições.
 
 Ah! se eu
      arranjasse um vestuário de vidro! Era [45]deslumbrante,
      e o judeu avarento não me teria despido.»
 
 No dia
      seguinte acordou o pinheiro com folhas de vidro, que reluziam ao sol como
      pequeninos espelhos. Ficou outra vez todo contente e orgulhoso, fitando
      desdenhosamente os seus vizinhos. Mas nisto o céu cobriu-se de
      nuvens, e o vento rugindo, estalando, quebrou com a sua asa negra as
      folhas de cristal.
 
 «Enganei-me ainda, disse o jovem
      pinheiro, vendo por terra todo feito em pedaços o seu manto
      cristalino. O oiro e o vidro não servem para vestir as florestas.
      Se eu tivesse a folhagem acetinada das aveleiras, seria menos brilhante,
      mas viveria descansado.»
 
 Cumpriu-se o seu último
      desejo, e, apesar de ter renunciado às vaidades primitivas,
      julgava-se ainda assim mais bem vestido do que todos os outros pinheiros
      seus irmãos. Mas passou por ali um rebanho de cabras, e vendo as
      folhas acabadas de nascer, tenrinhas e frescas, comeram-lhas todas sem
      deixar uma única.
 
 O pobre pinheiro, envergonhado e
      arrependido, já queria voltar à sua forma natural. Conseguiu
      ainda este favor, e nunca mais se queixou da sua sorte.
 
 
      
 
 [46]
    
      
 
 A filha.―Oh! mamã quebrou-se-me a agulha.
      
 A mãe.―Vou-te dar outra.
 
 A filha.―Como
      se fazem as agulhas, mamã?
 
 A mãe.―Vê
      se adivinhas.
 
 A filha.―Não sei, mamã.
      
 A mãe.―Conheces os metais?
 
 A
      filha.―Conheço mamã; tenho lá dentro muitos
      bocadinhos dentro de uma caixa.
 
 A mãe.―Ora
      muito bem, diz-me lá, as agulhas são de pau, de pedra, de mármore?
      
 A filha.―Oh! não; são de metal; mas de
      que metal?
 
 A mãe.―Antes de perguntar
      qualquer coisa, vê sempre se a adivinhas primeiro.
 
 A
      filha.―Ora espere!... uma agulha é de metal: não
      é de prata, porque não é branca; não é
      de oiro, porque não é de um lindo amarelo muito brilhante; não
      é de cobre, porque não é de um amarelo muito feio,
      que cheira mal... Então é de ferro, mamã?
 
      A mãe.―Adivinhaste.
 
 A filha.―Mas,
      mamã, o ferro não é liso e brilhante como as agulhas.
      
 [47]A mãe.―É
      que é primeiro polido e preparado de certo modo, e depois já
      se não chama ferro, é aço.
 
 A filha.―Bem,
      as agulhas são de aço. Agora quero adivinhar como é
      que as fazem.
 
 A mãe.―É impossível,
      não és capaz disso; mas hei de levar-te a uma fábrica
      onde se fazem agulhas. Hás-de vê-las fazer, e hás-de
      gostar muito.
 
 A filha.―Tinha vontade de saber como
      se fazem todas as coisas de que nos servimos.
 
 A mãe.―Tens
      razão; é uma vergonha ignorá-lo.
 
 A
      filha.―Mamã, deixe-me ver as suas agulhas.
 
 A
      mãe.―Olha, aí tens o meu estojo.
 
 A
      filha.―Meu Deus! Que pequeninas algumas! Que lindas! São
      tão fininhas, tão fininhas!... Muita habilidade há-de
      ser necessária para fazer uma coisinha tão delicada!
      
 A mãe.―Lembras-te de ver na feira um carrinho de
      marfim puxado por uma pulga, presa por uma cadeia de oiro?
 
 A
      filha.―Lembro, mamã; era tão bonito!
 
 A
      mãe.―Li num jornal alemão que um operário
      chamado Nerlinger fez um copo de um grão de pimenta, e que dentro
      deste copo havia mais doze...
 
 A filha.―Que
      pequeninos deviam ser os doze copos para caberem num grão de
      pimenta!
 
 A mãe.―E ainda não é
      tudo; cada um desses copinhos tinha as bordas doiradas, e sustentava-se no
      pé.
 
 A filha.―Que vontade eu tinha de ver
      isso!
 
 A mãe.―Tens razão de te
      admirares da habilidade dos homens. É efectivamente espantoso, e
      [48]deve saber-se, o modo porque se fabricam
      certas coisas; contudo ainda há outras obras mais dignas de admiração.
      
 A filha.―Quais, mamã?
 
 A mãe.―Já
      to digo. (Levanta-se.)
 
 A filha.―Que quer,
      mamã?
 
 A mãe.―Quero que vejas o
      microscópio de teu papá.
 
 A filha.―Pois
      sim; eu gosto de olhar pelo microscópio.
 
 A mãe.―Este
      é magnífico, e aumenta prodigiosamente os objectos. Vais ver
      a mais pequenina das minhas agulhas. Repara primeiro como é fina,
      lisa e brilhante... Agora olha; o que é que vês?
 
      A filha.―Meu Deus, que coisa tão feia! Que agulha tão
      grosseira!
 
 A mãe.―Vês-lhe buracos,
      riscos, asperezas, não é verdade?
 
 A filha.―Parece
      um prego muito grande e muito mal feito.
 
 A mãe.―Pois
      todas essas imperfeições são verdadeiras, existem na
      agulha; a nossa vista, por ser muito fraca, é que não dá
      por elas.
 
 A filha.―O operário que fez esta
      agulha ficaria envergonhado, se a visse ao microscópio.
 
      A mãe.―Tiremos a agulha, e vejamos outra coisa.
      
 A filha.―O quê, mamã?
 
 A mãe.―O
      aguilhãozinho de uma abelha.
 
 A filha.―Oh!
      que pequenino, que bonito!... Como é liso, como é
      brilhante!... Mas já sei que visto ao microscópio há
      de acontecer o mesmo que com a agulha.
 
 [49]A
      mãe.―Pronto: olha.
 
 A filha (olhando).―É
      esquisito, mamã!
 
 A mãe.―Então?
      
 A filha.―Aumentou, aumentou como a agulha, mas não
      é áspero, pelo contrario, é perfeitamente liso... A
      agulha parecia que não tinha ponta, e o ferrãozinho da
      abelha tem uma ponta tão fina como um cabelo. Porque será
      isto, mamã?
 
 A mãe.―É porque o
      operário que fez este aguilhão é muito mais hábil
      do que o que fez a agulha.
 
 A filha.―Quem é
      esse operário tão hábil?
 
 A mãe.―É
      o mesmo que fez o céu, os astros, a terra, as plantas e as
      criaturas.
 
 A filha.―É Deus.
 
 A
      mãe.―Exactamente. Pois não é Deus que fez
      as abelhas e todos os animais?
 
 A filha.―De certo.
      
 A mãe.―Foi ele por conseguinte que fez o aguilhão
      desta abelha; e aí tens porque o aguilhão é superior
      à agulha: é obra de Deus. Mas continuemos a olhar pelo
      microscópio. Aqui está um pedacinho de musselina finíssima.
      Olha pelo microscópio; o que é que vês?
 
 A
      filha.―Vejo uma rede grossa, desigual, muito mal feita.
      
 A mãe.―Aqui tens agora um pedacinho de renda
      delicadíssima.
 
 A filha.―Essa estou bem
      certa que há de ser linda, mesmo vista pelo microscópio.
      
 A mãe.―Então?
 
 A filha.―É
      horrorosa... Parece feita de pelos grosseiros com grandes buracos
      desiguais.
 
 A mãe.―As obras do homem são
      todas assim.
 
 [50]A filha.―Oh!
      mamã, vejamos agora as obras de Deus.
 
 A mãe.―Sabes
      o que é isto?
 
 A filha.―Sei, mamã,
      é um casulo de bicho de seda.
 
 A mãe.―Os
      fiozinhos que o compõem são muito finos, muito lisos; olha
      pelo microscópio a ver se te parecem desiguais.
 
 A
      filha (olhando pelo microscópio).―Não, mamã;
      os fios são todos iguais, e o casulo é sempre muito liso,
      muito brilhante.
 
 A mãe.―É porque
      é obra de Deus. Examinemos outras coisas. O que há sobre
      este papel?
 
 A filha.―Pontinhos feitos com tinta e
      manchazinhas redondas feitas também com tinta.
 
 A mãe.―Estes
      pontinhos e estas manchas parecem-te perfeitamente redondos?
 
 A
      filha.―Sim, mamã, perfeitamente redondos.
 
 A
      mãe.―Vê-os agora ao microscópio.
 
      A filha.―Oh! já não são redondos, são
      todos desiguais.
 
 A mãe.―Tira o papel;
      vejamos a obra de Deus. É uma asa de borboleta; vês que está
      mosqueada de pequeninas manchas redondas; olha pelo microscópio; o
      que é que vês?
 
 A filha.―Vejo a mesma
      coisa que via sem o vidro, só com a diferença que agora
      é maior. Que belas que são as obras de Deus!
 
 A
      mãe.―Merece bem a pena estudá-las.
 
 A
      filha.―De certo. Farei sempre por isso, comparando-as com as
      obras dos homens.
 
 A mãe.―E sempre e em tudo
      hás-de encontrar defeitos nas obras do homem, enquanto que [51]as obras de Deus, quanto mais se observam, mais
      perfeitas se acham. Deve isto fazer-nos meditar em duas coisas: a primeira
      é que Deus merece tanto a nossa admiração como o
      nosso amor; a segunda é que os homens orgulhosos são
      insensatos, porque não podem fazer nada perfeitamente belo,
      perfeitamente regular, e as suas obras mais primorosas são cheias
      de imperfeições, se as compararmos com as obras do Criador.
      
 
 
 
 [52]
    
      
 
 Era uma vez uma viúva com um filho único. Ao
      cabo dum Inverno rigoroso, possuía apenas um galo, e meio alqueire
      de farinha. João resolveu-se a correr mundo, à busca de
      fortuna. A mãe cozeu o resto da farinha, matou o galo, e disse-lhe:
      
 «O que é que preferes: metade desta merenda com a minha
      bênção, ou toda com a minha maldição?»
      
 «Que pergunta! respondeu o pequeno. Nem por quantos tesouros há
      no mundo eu quereria a tua maldição.»
 
      «Bem, meu filho, replicou a mãe carinhosamente. Leva tudo, e
      Deus te abençoe.»
 
 E partiu. Foi andando, andando,
      até que encontrou um jumento, que tinha caído num atoleiro,
      donde não podia sair.
 
 «Oh! João, exclamou o
      burro, tira-me daqui, que estou quase a afogar-me.»
 
      «Espera, respondeu João.»
 
 E, formando uma
      ponte com pedras e ramos de árvores, conseguiu tirar o quadrúpede
      do atoleiro.
 
 [53]«Obrigado,
      disse-lhe ele, aproximando-se de João. Se te posso ser útil,
      aqui me tens ao teu dispor. Aonde vais tu?»
 
 ―«Vou
      por esse mundo fora, a ver se ganho a minha vida.»
 
      «Queres tu que eu te acompanhe?
 
 «Anda daí.»
      
 E puseram-se a caminho.
 
 Ao passarem por uma aldeia, viram
      um cão perseguido pelos rapazes da escola, que lhe tinham atado ao
      rabo uma chocolateira velha. O pobre animal correu para João que o
      acariciou, e o jumento pôs-se a ornear de tal maneira, que os
      rapazes com o medo deitaram todos a fugir.
 
 «Obrigado,
      disse o rafeiro a João. Se para alguma coisa te for prestável,
      aqui me tens às tuas ordens. Aonde vais tu?»
 
      «Vou por esse mundo de Cristo, a ver se ganho a minha vida.»
      
 «Queres que te acompanhe?»
 
 «Anda daí.»
      
 Quando saíram da aldeia pararam junto duma fonte. O pequeno
      tirou a merenda do alforge, e repartiu-a com o cão. O burro pastou
      alguma erva que por ali havia. Enquanto jantavam, apareceu um gato
      esfaimado a miar lastimosamente.
 
 Coitado, exclamou João!»
      E deu-lhe uma asa do frango.
 
 ―«Obrigado disse o
      gato. Oxalá que um dia eu te possa ser útil. Aonde vais tu?
      
 ―«Procurar trabalho. Se queres, anda connosco.»
      
 ―De boa vontade.
 
 [54]Os
      quatro viajantes puseram-se a caminho. Ao cair da tarde, ouviram um grito
      dilacerante, e viram uma raposa correndo a toda a brida com um galo na
      boca.
 
 «Agarra! agarra!» bradou o pequeno ao cão.
      
 E no mesmo instante o cão atirou-se atrás da raposa,
      que, vendo-se em perigo, largou o galo para correr melhor. O galo saltando
      de contente disse a João:
 
 ―«Obrigado.
      Salvas-te-me a vida. Nunca me esquecerei. Aonde vais tu?»
 
      ―Arranjar trabalho. Queres vir connosco?
 
 ―«De
      boa vontade.»
 
 ―Então anda. Se te cansares,
      empoleira-te no jumento.»
 
 Os viajantes continuaram a
      jornada com o seu novo companheiro. Sentiram-se todos fatigados e não
      avistavam à roda nem uma quinta, nem uma cabana.
 
 ―«Paciência,
      disse João, outra vez seremos mais felizes. Resignemo-nos hoje a
      dormir ao ar livre; além disso a noite está sossegada, e a
      relva é macia.»
 
 Dito isto estendeu-se no chão;
      o jumento deitou-se ao lado dele, o cão e o gato aninharam-se entre
      as pernas do burro complacente, e o galo empoleirou-se numa árvore.
      
 Dormiam todos um sono profundíssimo, quando de repente o galo
      começou a cantar.
 
 ―«Que demónio!
      disse o jumento acordando todo zangado. Porque é que estás a
      gritar?»
 
 ―«Porque já é dia,
      respondeu o galo. Não vês ao longe a luz da madrugada, que
      vem rompendo?»
 
 [55]―«Vejo
      uma luz, disse João, mas não é do sol, é duma
      lanterna. Provavelmente há ali alguma casa, onde nos poderíamos
      recolher o resto da noite.»
 
 Foi aceita a proposta. Partiu
      a caravana; foi andando, andando, através dos campos, até
      que parou junto da casa do guarda dum grande castelo, donde subiam
      gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e blasfémias horríveis.
      
 ―Escutem, disse João; vamos devagarinho, muito
      devagarinho, a ver quem é que está lá dentro.»
      
 Eram seis ladrões armados de pistolas e de punhais, que se
      banqueteavam alegremente, sentados a uma mesa principesca.
 
      ―«Que bom assalto acabámos de dar, disse um deles, ao
      castelo do conde, graças ao auxilio do seu porteiro. Que bom homem
      que é este porteiro. À sua saúde!»
 
      ―«À saúde do nosso amigo!» repetiram em
      coro todos os ladrões.
 
 E dum trago despejaram os copos.
      
 João voltou-se para os companheiros, e disse-lhes em voz
      baixa:
 
 ―«Uni-vos uns aos outros o melhor que
      puderdes, e, assim que vos der sinal, rompei todos ao mesmo tempo numa
      gritaria diabólica.»
 
 O burro, levantando-se nas
      patas traseiras, lançou as mãos ao peitoril duma janela, o cão
      trepou-lhe à cabeça, o gato à cabeça do cão
      e o galo à cabeça do gato. João deu o sinal, e
      estoirou à uma o ornear do jumento, os latidos do cão, o
      miar do gato e os gritos estridentes do galo.
 
 [56]―«Agora,
      bradou João, fingindo que comandava um destacamento, carregar
      armas! Dai-me cabo dos ladrões; fogo!»
 
 No mesmo
      instante o jumento quebrou a janela com as patas, zurrando cada vez mais;
      os ladrões atemorizados refugiaram-se no bosque, saindo
      precipitadamente por uma porta falsa.
 
 João e os seus
      companheiros penetraram na sala abandonada, comeram um excelente jantar, e
      deitaram-se em seguida―João numa cama, o burro na cavalariça,
      o cão numa esteira ao pé da porta, o gato junto do fogão
      e o galo num poleiro.
 
 Ao principio os ladrões ficaram
      muito contentes, por se verem sãos e salvos na floresta. Mas
      depois, começaram a reflectir.
 
 ―«Era bem
      melhor a minha cama, do que esta erva tão húmida, disse um
      deles.»
 
 ―«Tenho pena do frango que eu começava
      a saborear, disse um outro.»
 
 ―«E que rico
      vinho aquele! acrescentou o terceiro.»
 
 ―«E o
      que é mais lamentável, exclamou um quarto, é
      ficar-nos lá todo o dinheiro, que, com a ajuda do criado do conde,
      tínhamos tirado das gavetas.»
 
 ―Vou ver se
      torno lá a entrar! disse o capitão.
      
 ―Bravo! exclamaram os ladrões.
 
 E pôs-se
      a caminho.
 
 Já não havia luz na casa; o capitão
      entrou às apalpadelas, e dirigiu-se para o fogão; o gato
      saltou-lhe à cara e esfarrapou-lha com as garras. [57]Soltou um grito doloroso, correu para a porta,
      mas infelizmente pisou o rabo do cão, que lhe deu uma grande
      dentada. Gritou de novo, e conseguiu por fim transpor o limiar da porta.
      Mas quando ia a sair, o galo atirou-se a ele, rasgando-o com o bico e com
      as unhas.
 
 ―Anda o diabo nesta casa! exclamou o capitão,
      como poderei eu sair!»
 
 Julgou encontrar refúgio na
      estrebaria; mas o burro atirou-lhe uma parelha de coices, que o deitou
      quase morto ao meio do chão.
 
 Passado algum tempo veio a
      si; apalpou o corpo, viu que não tinha nem pernas nem braços
      partidos, ergueu-se e tornou para a floresta.
 
 ―Então?
      então?―perguntaram-lhe os camaradas assim que o viram.
      
 ―Nada feito, exclamou ele. Mas antes de tudo arranjem-me uma
      cama para me deitar e cataplasmas de linhaça para pôr neste
      corpo, que o trago num feixe. Não podeis imaginar o que sofri. Na
      cozinha fui assaltado por uma velha que estava a cardar lã, e
      arrumou-me na cara com o sedeiro, deixando-me neste miserável
      estado. Quando ia a sair a porta, um demónio dum remendão
      atravessou-me as pernas com a sovela. Logo depois Satanás em pessoa
      atirou-se a mim, despedaçando-me com as garras. Na estrebaria
      deram-me uma paulada que me ia matando. Se vocês me não
      acreditam, vão lá, e experimentem.»
 
 ―Acreditamos,
      disseram os companheiros, vendo-lhe a cara e o corpo todo ensanguentado: Não
      seremos nós que lá tornaremos.»
 
 Pela manhã,
      João e os seus camaradas almoçaram [58]ainda excelentemente, e partiram em
      seguida para restituir ao conde o dinheiro que os ladrões lhe
      tinham roubado. Meteram-no cuidadosamente dentro de dois sacos, com que
      carregou o jumento. Foram andando, andando, até que chegaram
      à porta do castelo. Diante dessa porta estava o malvado do
      porteiro, com uma libré esplêndida, meias de seda, calções
      escarlates e cabelo empoado.
 
 Olhou com ar de desprezo para a
      pequenina caravana, e disse a João:
 
      ―Que vindes aqui buscar? Não há lugar para os
      recolher, vão-se embora.»
 
      ―Não queremos nada de ti, respondeu João. O dono do
      castelo far-nos-á um bom acolhimento.
 
 ―Fora daqui
      vagabundos, exclamou o porteiro enfurecido. Ponham-se a andar
      imediatamente, quando não atiro-lhes já às pernas os
      meus cães de fila.»
 
 ―Perdão, só
      um instante, replicou o galo empoleirado na cabeça do jumento; não
      me poderias dizer quem é que abriu aos ladrões na noite
      passada a porta do castelo?»
 
 O porteiro corou. O conde
      que estava à janela, disse-lhe:
 
 ―Ó Bernabé,
      responde ao que esse galo te acaba de perguntar.
 
 ―Senhor,
      replicou Bernabé, este galo é um miserável. Não
      fui eu que abri a porta aos seis ladrões.
 
 ―Como
      é então, meu velhaco, tornou o conde, que tu sabes que eram
      seis?
 
 Seja como for, disse João, aqui lhe trazemos o
      [59]dinheiro roubado, pedindo-lhe unicamente
      que nos dê de jantar e nos recolha esta noite, porque vimos cansados
      do caminho.
 
 ―Ficai certos que sereis bem tratados.
      
 O burro, o cão e o galo, levaram-nos para a quinta. O gato
      ficou na cozinha. E enquanto a João, o conde reconhecido, vestiu-o
      dos pés à cabeça com um vestuário magnífico,
      deu-lhe um relógio de ouro, e disse-lhe:
 ―Queres ficar
      comigo? És esperto e honrado, serás o meu intendente.»
      
 João aceitou a proposta, e mandou vir a sua velha mãe
      para o pé de si. Casou depois com uma linda rapariga, e viveu
      sempre felicíssimo.
 
 
 
 
 [60]
    
      
 
 Em tempos muito remotos os habitantes duma grande cidade
      levantaram uma igreja magnífica a Santa Cecília, padroeira
      dos músicos.
 
 As rosas mais vermelhas e os lírios
      mais cândidos enfeitavam o altar. O vestido da santa era de
      filigrana de prata e os sapatinhos eram de oiro, feitos pelo melhor
      ourives que havia na cidade. A capela estava constantemente cheia de
      peregrinos e devotos. Uma vez foi lá em romaria um pobre
      rabequista, pálido, magro, escaveirado. Como a jornada tinha sido
      muito longa, estava cansado, e já no seu alforge não havia pão
      nem dinheiro no bolso para o comprar.
 
 Assim que entrou na
      capela, começou a tocar na sua rabeca com tal suavidade, com tanta
      expressão, que a santa ficou enternecida ao vê-lo tão
      pobre e ao escutar aquela música deliciosa. Quando terminou, Santa
      Cecília abaixou-se, descalçou um dos seus ricos sapatos de
      ouro, e deu-o ao pobre músico, que tonto de alegria, dançando,
      cantando, chorando, correu à loja dum ourives para lho vender. O
      ourives, reconhecendo o sapato da santa, prendeu o pobre rabequista e
      levou-o à presença [61]do juiz.
      Instauraram-lhe processo, julgaram-no, e foi condenado à morte.
      
 Chegara o dia da execução. Os sinos dobravam
      lastimosamente, e o cortejo pôs-se em marcha ao som dos cânticos
      dos frades, que ainda assim não chegavam a dominar os sons da
      rabeca do condenado, que pedira, como última graça, o
      deixarem-lhe tocar na sua rabeca até ao último momento. O
      cortejo chegou defronte da capela da santa, e quando pararam suplicou o
      triste desgraçado, que o levassem lá dentro para tocar a sua
      derradeira melodia.
 
 Os padres e os chefes da escolta
      consentiram, e o rabequista entrou, ajoelhou aos pés da santa, e
      debulhado em lágrimas começou a tocar. Então o povo,
      maravilhado e aterrado, viu Santa Cecília curvar-se de novo, descalçar
      o outro sapato e metê-lo nas mãos do infeliz músico.
      À vista deste milagre, todos os assistentes, levaram em triunfo o
      rabequista, coroaram-no de flores, e os magistrados vieram solenemente
      prestar-lhe as mais honrosas homenagens.
 
 
 
 
      [62]
    
      
 
 Um lavrador que tinha quatro filhos trouxe-lhes um dia cinco pêssegos
      magníficos. Os pequenos, que nunca tinham visto semelhantes frutos,
      extasiaram-se diante das suas cores e da fina penugem que os cobria.
      À noite o pai perguntou-lhes:
 
 ―Então
      comeram os pêssegos?
 
 ―Eu comi, disse o mais velho.
      Que bom que era! Guardei o caroço, e hei-de plantá-lo para
      nascer uma árvore.»
 
 ―Fizeste bem, respondeu
      o pai, é bom ser económico e pensar no futuro.»
      
 ―Eu, disse o mais novo, o meu pêssego comi-o logo, e a
      mamã ainda me deu metade do que lhe tocou a ela. Era doce como mel.»
      
 ―Ah! acudiu o pai, foste um pouco guloso, mas na tua idade não
      admira; espero que quando fores maior te hás-de corrigir.»
      
 ―Pois eu cá, disse um terceiro, apanhei o caroço
      que o meu irmão deitou fora, quebrei-o, e comi o que estava dentro,
      que era como uma noz. Vendi o meu pêssego, e com o dinheiro hei de
      comprar coisas quando for à cidade.»
 
 O pai meneou
      a cabeça:
 
 [63]―Foi
      uma ideia engenhosa, mas eu preferia menos cálculo.
 
      ―E tu, Eduardo, provaste o teu pêssego?
 
 ―Eu,
      meu pai, respondeu o pequeno, levei-o ao filho do nosso vizinho, ao Jorge,
      que está coitadinho com febre. Ele não o queria, mas
      deixei-lho em cima da cama, e vim-me embora.
 
 ―Ora bem,
      perguntou o pai, qual de vós é que empregou melhor o pêssego
      que eu lhe dei?
 
 E os três pequenos disseram à uma:
      
 ―Foi o mano Eduardo.
 
 Este no entanto não
      dizia palavra, e a mãe abraçou-o com os olhos arrasados de lágrimas.
      
 
 
 
 [64]
    
      
 
 Era uma vez uma viúva, que tinha uma filhinha muito
      linda, a quem adorava sobre todas as coisas. Não se separava dela
      um só momento; mas um dia a pobre pequerrucha começou a
      sofrer, adoeceu e morreu. A desditosa mãe, que tinha passado as
      noites e os dias, sem repousar um momento, à cabeceira da filha,
      julgou endoidecer de mágoa e de saudades. Não comia, não
      fazia senão chorar e lamentar-se. Uma noite em que estava
      acabrunhada, chorando no mesmo sítio em que a filha tinha morrido,
      abriu-se de repente a porta do quarto e viu-a aparecer a ela, a sua
      querida filha, sorrindo com uma expressão angélica e
      trazendo nas mãos uma urna, que vinha cheia até às
      bordas.
 
 ―«Oh! minha querida mãe, disse-lhe
      ela, não chores mais. Olha, o anjo das lágrimas recolheu as
      tuas nesta urna. Se chorares mais, transbordará, e as tuas lágrimas
      correrão sobre mim, inquietando-me no túmulo e perturbando a
      minha felicidade no paraíso.
 
 A pequenina desapareceu, e
      a mãe não tornou a chorar para a não afligir.
      
 
 
 
 [65]
    
      
 
 Os vossos filhos serão para vós como vós
      tiverdes sido para vossos pais. E é natural. As crianças vêem
      diariamente o que fazem seus pais, e imitam-nos. Justifica-se desta
      maneira o provérbio que diz,―que a bênção
      ou a maldição dum pai cai sobre a cabeça de seus
      filhos, terminando sempre por se realizar. Citaremos dois exemplos, que
      merecem ser meditados.
 
 Um príncipe, passeando no campo,
      viu um pobre homem, que andava muito satisfeito, a lavrar a terra. Pôs-se
      a conversar com ele. Depois de algumas perguntas, soube que o campo não
      pertencia ao homem, mas que trabalhava nele mediante um salário de
      doze vinténs por dia. O príncipe, que para as suas despesas
      de administração e representação necessitava
      de quantias avultadas, custou-lhe ao principio a perceber, como se vivia
      com doze vinténs diários, andando-se ainda por cima
      satisfeito. Manifestou o seu espanto ao aldeão, que lhe respondeu:
      
 «Gasto diariamente comigo a terça parte dessa quantia;
      outro terço é para pagar as minhas dividas; [66]e o resto é para ir juntando algumas
      economias.»
 
 Era um novo enigma para o príncipe.
      Mas o alegre camponês explicou-lho deste modo.
 
 «Reparto
      quanto ganho com os meus velhos pais, que já não podem
      trabalhar, e com os meus filhos, que ainda não têm força
      para isso. Aos primeiros pago-lhes o amor de que me deram tantas provas na
      minha infância; e espero que os segundos não me abandonem,
      quando os anos tiverem pesado sobre mim.»
 
 O príncipe,
      ouvindo isto, quis premiar o honrado camponês; encarregou-se da
      educação de seus filhos; e a bênção que
      lhe deram os seus velhos pais, os seus filhos merecerem-na depois pela sua
      vez, rodeando igualmente a sua velhice de cuidados piedosos e da mais
      terna dedicação.
 
 Mas posso desgraçadamente
      citar-vos outro filho, que procedeu duma maneira tão indigna com
      seu velho pai doente e aleijado, que este teve de pedir que o levassem
      para o hospital da misericórdia. O filho ingrato recebeu com
      alegria o desejo do infeliz velho, que nessa mesma tarde foi conduzido ao
      hospital. Como este estabelecimento de caridade fosse muito pobre,
      decidiu-se o velho a mandar pedir a seu filho, como última esmola,
      um par de lençóis, para cobrir a palha que lhe servia de
      leito. O mau filho escolheu os lençóis mais usados, e disse
      ao seu pequeno, de dez anos de idade, que os fosse levar a esse velho
      rabujento. Mas notou que a criança ao partir tinha escondido um
      dos lençóis a um canto, atrás da porta.
 
      [67]Quando voltou perguntou-lhe o pai, porque
      fizera aquilo.
 
 «Foi, respondeu a criança
      desabridamente, para me servir mais tarde deste lençol, quando pela
      minha vez te mandar também para o hospital.
 
 
 
      
 [68]
    
      
 
 Era uma vez um sultão, que despendia em vestuário
      todo o seu rendimento.
 
 Quando passara revista ao exercito,
      quando ia aos passeios ou ao teatro, não tinha outro fim senão
      mostrar os seus fatos novos. Mudava de traje a todos os instantes, e como
      se diz dum rei: Está no conselho; dizia-se dele: Está-se a
      vestir. A capital do seu reino era uma cidade muito alegre, graças
      à quantidade de estrangeiros que por ali passavam; mas chegaram lá
      um dia dois larápios, que, dando-se por tecelões, disseram
      que sabiam fabricar o estofo mais rico que havia no mundo. Não só
      eram extraordinariamente belos os desenhos e as cores, mas além
      disso os vestuários feitos com esse estofo, possuíam uma
      qualidade maravilhosa: tornavam-se invisíveis para os idiotas e
      para todos aqueles que não exercessem bem o seu emprego.
 
      ―São vestuários impagáveis, disse consigo o
      sultão; graças a eles, saberei distinguir os inteligentes
      dos tolos, e reconhecer a capacidade dos ministros. Preciso desse estofo!»
      
 E mandou em seguida adiantar aos dois charlatães [69]uma quantia avultada, para que pudessem começar
      os trabalhos imediatamente.
 
 Os homens levantaram com efeito
      dois teares, e fingiram que trabalhavam, apesar de não haver
      absolutamente nada nas lançadeiras. Requisitavam seda e oiro fino a
      todo o instante; mas guardavam tudo isso muito bem guardado, trabalhando
      até à meia noite com os teares vazios.
 
 ―«Preciso
      saber se a obra vai adiantada».
 
 Mas tremia de medo ao
      lembrar-se que o estofo não podia ser visto pelos idiotas. E,
      apesar de ter confiança na sua inteligência, achou prudente
      em todo o caso mandar alguém adiante.
 
 Todos os
      habitantes da cidade, conheciam a propriedade maravilhosa do estofo, e
      ardiam em desejos de verificar se seria exacto.
 
 ―Vou
      mandar aos tecelões o meu velho ministro, pensou o sultão;
      tem um grande talento, e por isso ninguém pode melhor do que ele
      avaliar o estofo.
 
 O honrado ministro entrou na sala em que os
      dois impostores trabalhavam com os teares vazios.
 
 ―Meu
      Deus! disse ele consigo arregalando os olhos, não vejo
      absolutamente nada!» Mas no entanto calou-se. Os dois tecelões
      convidaram-no a aproximar-se, pedindo-lhe a sua opinião sobre os
      desenhos e as cores. Mostraram-lhe tudo, e o velho ministro olhava,
      olhava, mas não via nada, pela razão simplicíssima de
      nada lá existir.
 
 ―Meu Deus! pensou ele, serei
      realmente estúpido? É necessário que ninguém o
      saiba!... Ora esta! Pois serei tolo realmente! Mas lá confessar que
      não vejo nada, isso é que eu não confesso.»
      
 [70]«Então que lhe parece?»
      perguntou um dos tecelões:
 
 ―«Encantador,
      admirável! respondeu o ministro, pondo os óculos. Este
      desenho... estas cores... magnífico!... Direi ao sultão que
      fiquei completamente satisfeito.»
 
 ―«Muito
      agradecido, muito agradecido», disseram os tecelões; e
      mostraram-lhe cores e desenhos imaginários, fazendo-lhe deles uma
      descrição minuciosa. O ministro ouviu atentamente, para ir
      depois repetir tudo ao sultão.
 
 Os impostores
      requisitavam cada vez mais seda, mais prata e mais oiro; precisavam-se
      quantidades enormes para este tecido. Metiam tudo no bolso, é
      claro; o tear continuava vazio, e apesar disso trabalhavam sempre.
      
 Passado algum tempo, mandou o sultão um novo funcionário,
      homem honrado, a examinar o estofo, e ver quando estaria pronto. Aconteceu
      a este enviado o que tinha acontecido ao ministro: olhava, olhava e não
      via nada.
 
 ―Não acha um tecido admirável?»
      perguntaram os tratantes, mostrando o magnífico desenho e as belas
      cores, que tinham apenas o inconveniente de não existir.
 
      ―Mas que diabo! Eu não sou tolo! dizia o homem consigo. Pois
      não serei eu capaz de desempenhar o meu lugar? É esquisito!
      mas deixá-lo, não o deixo eu.»
 
 Em seguida
      elogiou o estofo, significando-lhes toda a sua admiração
      pelo desenho e o bem combinado das cores.
 
 ―É duma
      magnificência incomparável, disse [71]ele
      ao sultão. E toda a cidade começou a falar desse tecido
      extraordinário.
 
 Enfim o próprio sultão
      quis vê-lo enquanto estava no tear. Com um grande acompanhamento de
      pessoas distintas, entre as quais se contavam os dois honrados funcionários,
      dirigiu-se para as oficinas, em que os dois velhacos teciam continuamente,
      mas sem fios de seda, nem de oiro, nem de espécie alguma.
      
 ―Não acha magnífico? disseram os dois honrados
      funcionários. O desenho e as cores são dignos de vossa
      alteza.»
 
 E apontaram para o tear vazio, como se as outras
      pessoas que ali estavam pudessem ver alguma coisa.
 
 ―Que
      é isto! disse consigo mesmo o sultão, não vejo nada!
      É horrível! serei eu tolo, incapaz de governar os meus
      estados? Que desgraça que me acontece!» Depois de repente
      exclamou: «É magnífico! Testemunho-vos a minha satisfação.»
      
 E meneou a cabeça com um ar satisfeito, e olhou para o tear,
      sem se atrever a declarar a verdade. Todas as pessoas de seu séquito
      olharam do mesmo modo, uns atrás dos outros, mas sem ver coisa
      alguma, e no entanto repetiam como o sultão: «É magnífico!»
      Até lhe aconselharam a que se apresentasse com o fato novo no dia
      da grande procissão. «É magnífico! é
      encantador! é admirável!» exclamavam todas as bocas, e
      a satisfação era geral.
 
 Os dois impostores foram
      condecorados e receberam o titulo de fidalgos tecelões.
 
      Na véspera do dia da procissão passaram a noite em claro,
      trabalhando à luz de dezasseis velas. [72]Finalmente
      fingiram tirar o estofo do tear, cortaram-no com umas grandes tesouras,
      coseram-no com uma agulha sem fio, e declararam, depois disto, que estava
      o vestuário concluído.
 
 O sultão com os
      seus ajudantes de campo foi examiná-lo, e os impostores levantando
      um braço, como para sustentar alguma coisa, disseram:
 
      «Eis as calças, eis a casaca, eis o manto. Leve como uma teia
      de aranha; é a principal virtude deste tecido.»
 
      ―Decerto, respondiam os ajudantes de campo, sem ver coisa alguma.
      
 ―Se vossa alteza se dignasse despir-se, disseram os larápios,
      provar-lhe-íamos o fato diante do espelho.»
 
 O sultão
      despiu-se, e os tratantes fingiram apresentar-lhe as calças, depois
      a casaca, depois o manto. O sultão tudo era voltar-se defronte do
      espelho.
 
 ―Como lhe fica bem! que talhe elegante!
      exclamaram todos os cortesãos. Que desenho! que cores! que vestuário
      incomparável!»
 
 Nisto entrou o grão-mestre
      de cerimónias.
 
 ―Está à porta o
      dossel sobre que vossa alteza deve assistir à procissão,
      disse ele.»
 
 ―Bom! estou pronto, respondeu o sultão.
      Parece-me que não vou mal.»
 
 E voltou-se ainda uma
      vez diante do espelho, para ver bem o efeito do seu esplendor. Os
      camaristas que deviam levar a cauda do manto, não querendo
      confessar que não viam absolutamente nada, fingiam arregaçá-la.
      
 E, enquanto o sultão caminhava altivo sob um [73]dossel deslumbrante, toda a gente na rua e
      às janelas exclamava: «Que vestuário magnífico!
      Que cauda tão graciosa! Que talhe elegante!» Ninguém
      queria dar a perceber, que não via nada, porque isso equivalia a
      confessar que se era tolo. Nunca os fatos do sultão tinham sido tão
      admirados.
 
 ―Mas parece que vai em cuecas», observou
      um pequerrucho, ao colo do pai.
 
 ―É a voz da inocência,
      disse o pai.
 
 ―Há ali uma criança que diz
      que o sultão vai em cuecas.
 
 «Vai em cuecas! vai em
      cuecas!» exclamou o povo finalmente.
 
 O sultão
      ficou muito aflito porque lhe pareceu que realmente era verdade.
      Entretanto tomou a enérgica resolução de ir até
      ao fim, e os camaristas submissos continuaram a levar com respeito a cauda
      imaginária.
 
 
 
 
 [74]
    
      
 
 Um homem rico, mas avarento, tinha perdido dentro dum alforge
      uma quantia em oiro bastante avultada. Anunciou que daria cem mil réis
      de alvíssaras a quem lha trouxesse. Apresentou-se-lhe em casa um
      honrado camponês levando o alforge. O nosso homem contou o dinheiro,
      e disse:
 
 ―Deviam ser oitocentos mil réis, que foi
      a quantia que eu perdi; no alforge encontro apenas setecentos; vejo, meu
      amigo, que recebeste adiantados os cem mil réis de alvíssaras:
      estamos pagos por conseguinte.»
 
 O bom camponês, que
      nem por sombras tocara no dinheiro, não podia nem devia
      contentar-se com semelhantes agradecimentos. Foram ter com o juiz, que,
      vendo a má fé do avarento, deu a seguinte sentença:
      
 ―Um de vós perdeu oitocentos mil réis; o outro
      encontrou um alforge apenas com setecentos: Resulta daí claramente
      que o dinheiro que o último encontrou não pode ser o mesmo a
      que o primeiro se julga com direito. Por consequência tu, meu bom
      homem, leva o dinheiro que encontraste, [75]e
      guarda-o até que apareça o indivíduo que perdeu
      somente setecentos mil réis. E tu, o único conselho que
      passo a dar-te, é que tenhas paciência até que apareça
      alguém que tenha achado os teus oitocentos mil réis.
      
 
 
 
 [76]
    
      
 
 Um rei, que viajava nos seus estados, encontrou uma vez um
      homem a quem perguntou como se chamava, de donde era, e que oficio tinha.
      Este respondeu:
 
 ―«Senhor: eu sou um desgraçado,
      um miserável; nasci no vosso reino, e chamo-me Ingratidão.»
      
 ―«Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei,
      tomava-te ao meu serviço.»
 
 O nosso homem prometeu
      ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o seguisse. Desde que chegaram a palácio,
      deu tais provas de habilidade, mostrou-se tão esperto e tão
      solícito, que o rei afeiçoou-se-lhe de tal modo, que o
      nomeou seu intendente, confiando-lhe a administração da sua
      casa. Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu orgulho
      desde então não conheceu limites; maltratava os inferiores,
      e não tinha compaixão dos desventurados.
 
 Ora, na
      vizinhança do palácio havia uma floresta cheia de animais
      selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou aí fazer por
      toda a parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras,
      caindo dentro, pudessem ser agarradas. [77]Um
      dia que o intendente atravessava a floresta, ia tão absorvido pelos
      seus pensamentos orgulhosos, que se precipitou ele mesmo dentro duma das
      covas.
 
 Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo
      poço; caiu depois um lobo e em seguida uma enorme serpente, de
      aspecto horroroso. O governador, ao ver-se em tão extraordinária
      companhia, ficou tão horrorizado, que lhe embranqueceram os
      cabelos; e toda a esperança de salvação lhe parecia
      inteiramente perdida, porque por mais que gritasse, ninguém o vinha
      socorrer.
 
 Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem
      extremamente pobre, chamado António, que todos os dias ia rachar
      lenha à floresta, para ganhar o pão necessário
      à sua mulher e aos seus filhos. António também lá
      foi nesse dia, como de costume, e pôs-se a trabalhar não
      longe da cova em que caíra o intendente, cujos gritos de aflição
      não tardou a ouvir. O pobre rachador aproximou-se e perguntou, quem
      era que estava ali.
 
 ―«Sou o governador do palácio
      do rei, e, se me tirares daqui, prometo encher-te de riquezas; estou em
      companhia dum leão, dum lobo e duma enorme serpente.»
      
 ―«Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável
      jornaleiro, não tendo para sustentar a minha família, mais
      que o produto do meu trabalho; bastava um dia perdido para me causar um
      grande desarranjo; vê lá pois, se cumpres a tua promessa?
      
 O intendente continuou:
 
 ―«Pela fé que
      devo a Deus e a el-rei nosso senhor, [78]juro-te
      que cumprirei a minha palavra.»
 
 Confiado nisto o rachador
      de lenha foi à cidade, e voltou com uma corda muito comprida, que
      deixou correr dentro do abismo. O leão atirou-se a ela, e
      suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era o
      intendente.
 
 Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu
      salvador com a maior amabilidade, e foi-se embora à procura de
      jantar, porque tinha fome.
 
 António deitou outra vez a
      corda ao fundo do poço, e, julgando tirar o governador, enganou-se,
      porque era o lobo; à terceira vez subiu a serpente; foi necessário
      fazer uma quarta tentativa, para sair o governador. Este não perdeu
      tempo em agradecimentos, e partiu a correr para o palácio. O
      jornaleiro voltou para casa, e contou à mulher tudo o que se tinha
      passado, não lhe esquecendo, é claro, as brilhantes
      promessas do intendente. No dia seguinte logo pela manhã, foi o
      pobre homem bater à porta do palácio. O porteiro
      perguntou-lhe o que queria.
 
 ―«Faça-me o
      favor, respondeu o rachador de dizer a s.ex.ª o intendente que o
      homem com quem ele esteve ontem na floresta lhe deseja falar.»
      
 O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se, e
      exclamou:
 
 ―«Vai dizer a esse homem, que eu não
      vi ninguém na floresta; que se ponha a andar, porque o não
      conheço.»
 
 O porteiro voltou, e repetiu o que o
      governador lhe tinha dito.
 
 O pobre homem tornou para casa mui
      descorçoado, [79]e contou à
      mulher a odiosa perfídia de que tinha sido vitima.
 
 A
      mulher disse-lhe:
 
 ―«Tem paciência; o sr.
      intendente estava hoje decerto muito ocupado, e foi talvez por isso que te
      não pôde receber.»
 
 Estas palavras sossegaram
      o rachador que outra vez nutriu esperanças.
 
 Na manhã
      seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo à porta do palácio.
      Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que não
      tornasse ali a aparecer, quando não ver-se-ia obrigado a empregar
      meios violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:
      
 ―«Experimenta terceira e última vez, disse-lhe
      ela, talvez Deus o inspire melhor. E se assim não for, ainda que te
      custe, não penses mais nisso.»
 
 No dia seguinte o
      bom do homem voltou à carga; e tendo o porteiro consentido à
      força de suplicas em anunciá-lo ainda ao governador, este
      encolerizado atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre homem
      duma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do chão.
      A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com um burro, pôs-lhe
      em cima o marido, e levou-o para casa: As feridas levaram-lhe seis meses a
      curar, estando sempre de cama, vendo-se obrigado a contrair dividas para
      pagar ao médico. Quando finalmente tinha recobrado algumas forças,
      voltou ao bosque segundo o costume para fazer alguma lenha. Apenas lá
      chegou, apareceu-lhe o leão, que ele tinha ajudado a sair do poço.
      O leão conduzia um burro diante de si, e [80]este
      burro estava carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão,
      vendo António, parou e inclinou-se diante dele com um ar de
      respeitoso agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho,
      fazendo-lhe sinal de que ficasse com o jumento. António doido de
      alegria levou o animal para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.
      
 No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o
      lobo, que o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o
      quanto lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e
      tinha carregado o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente,
      que ele tinha tirado do fôjo, e que trazia na ponta da língua
      uma pedra preciosa, em que brilhavam três cores,―o branco, o
      preto e o vermelho. Quando a serpente chegou ao pé do rachador de
      lenha, deixou cair a pedra junto dele, e depois dando um salto desapareceu
      no matagal. António levantou a pedra, examinou-a por todos os
      lados, para ver que propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter
      com um velho, afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os
      astros. Este, assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande
      quantia. António respondeu-lhe que a não queria vender, mas
      simplesmente saber se seria boa.
 
 O velho respondeu:
 
      ―«São três as virtudes desta pedra: abundância
      contínua, alegria imperturbável e luz sem trevas. Se alguém
      ta comprar por menos dinheiro do que vale, tornará imediatamente
      para a tua mão.»
 
 António ficou muito
      contente com esta resposta, [81]agradeceu ao
      velho da ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a
      sua felicidade. Como se imagina, graças à virtude da famosa
      pedra, não lhe faltaram daí em diante, nem honras nem
      riquezas.
 
 Tendo chegado aos ouvidos do rei a noticia destas
      prosperidades, mandou chamar António, e mostrou-lhe desejos de
      adquirir o precioso talismã.
 
 António, vendo que
      semelhante desejo era uma ordem, respondeu:
 
 ―«Devo
      prevenir a vossa majestade de que, se esta pedra me não for paga
      pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.»
      
 ―«Hei de pagar-ta bem, disse o rei.»
 
 E
      mandou-lhe dar trinta mil libras em oiro. No dia seguinte de manhã,
      António achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher sabendo
      isto disse-lhe:
 
 ―«Torna a levá-la ao rei
      imediatamente; não vá ele persuadir-se que lha furtaste.»
      
 O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à presença
      de sua majestade, pediu-lhe que lhe dissesse aonde tinha guardado a pedra
      preciosa.
 
 ―«Mandei-a meter com todo o cuidado
      dentro dum cofre de ferro, fechado com sete chaves, disse o rei.»
      
 António mostrou-lhe então a jóia preciosa, e o
      rei ficou extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha
      adquirido semelhante tesouro.
 
 António contou-lhe tudo
      que tinha havido, a ingratidão do governador e o reconhecimento dos
      animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o seu intendente, e
      disse-lhe:
 
 [82]―«Homem
      perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão,
      porque és mais falso e mais pérfido que os animais ferozes,
      e pagaste com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será
      feita. Dou a António as tuas honras e os teus bens, e a ti, hoje
      mesmo, o castigo de seres enforcado.»
 
 Admiraram todos a
      sentença do rei, e António desempenhou as suas altas funções
      com tanta sabedoria e bondade, que depois da morte do rei foi escolhido
      para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos gloriosos.
      
 
 
 
 [83]
    
      
 
 Um homem, animado pela mais ardente crença religiosa,
      deliberou retirar-se a uma gruta solitária para se consagrar
      inteiramente ao trabalho da sua salvação. Jejuando sempre,
      orando, ciliciando-se, os seus pensamentos não se desviavam nunca
      da ideia de Deus. Depois de ter assim vivido durante muitos anos, uma
      noite lembrou-se de que já tinha merecido um lugar glorioso no paraíso,
      e podia ser contado entre os santos mais notáveis.
 
 Na
      noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e disse-lhe:
 
      ―Há no mundo um pobre músico, que anda de porta em
      porta, tocando viola e cantando, e que mereceu mais do que tu as
      recompensas eternas.
 
 O ermitão, atónito, ao ouvir
      estas palavras, levantou-se, agarrou no seu bordão, foi em busca do
      músico e mal o encontrou disse-lhe:
 
 ―Irmão,
      diz-me que boas obras fizeste, e por meio de que orações e
      penitências te tornaste agradável a Deus.
 
 ―Ora,
      respondeu-lhe o músico, abaixando a cabeça, santo padre, não
      zombes de mim. Nunca fiz [84]boas obras, e
      quanto a orações não as sei, pobre de mim, que sou um
      pecador. O que faço é andar de casa em casa a divertir os
      outros.»
 
 O austero ermitão continuou a insistir:
      
 ―Estou certo que, no meio da tua existência vagabunda,
      praticaste algum acto de virtude.»
 
 ―Em verdade não
      poderia citar nem um só.»
 
 ―Mas então
      como chegaste a este estado de pobreza? Tens vivido loucamente como os que
      exercem a tua profissão? Dissipaste frivolamente o teu património
      e o produto do teu ofício?»
 
 ―Não; mas
      um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham
      sido condenados à escravidão para pagar uma dívida.
      Essa mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em minha casa,
      protegia-a em todos os perigos, dei-lhe tudo que possuía para
      resgatar a sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia
      encontrar-se com seu marido e com seus filhos. Mas quem não teria
      feito outro tanto?»
 
 A estas palavras o ermitão pôs-se
      a chorar, e exclamou:
 
 ―Nos meus setenta anos de solidão
      nunca pratiquei uma obra tão meritória, e apesar disso
      chamo-me o homem de Deus, enquanto que tu não passas dum pobre músico.»
      
 
 
 
 [85]
    
      
 
 Carlos Magno numa das suas frequentes viagens viu o abade de
      S. Gall, preguiçosamente reclinado sobre almofadas à porta
      da abadia, fresco, rosado, bem disposto. Carlos Magno adorava os homens enérgicos
      e activos, e o abade era indolente. Além disso o imperador tinha
      mais dum motivo de queixa contra ele.
 
 ―Bons dias, senhor
      abade. Ainda bem que o encontro. Tenho a submeter à sua esclarecida
      razão três perguntas, às quais terá a bondade
      de me responder daqui a três meses, contados dia a dia, em sessão
      solene do nosso conselho imperial. Primeiro que tudo, desejo saber o meu
      valor em dinheiro; em segundo lugar, quanto tempo levaria a dar a volta ao
      mundo; em terceiro lugar, que estarei eu pensando no momento em que v.
      rev.ma vier à minha presença, pensamento que deve
      ser um erro. Trate de arranjar resposta satisfatória a tudo, aliás
      deixa de ser abade de S. Gall, e tem de abandonar a abadia, montado num
      burro com a cara voltada para o rabo.»
 
 O abade não
      sabia a que santo se apegar. Mandou a todas as escolas, mas os doutores
      mais [86]famosos pela sua ciência, não
      lhe souberam dar resposta. No entanto os dias iam correndo, e a época
      fatal aproximava-se; já não faltava senão um mês,
      já não faltavam senão semanas, e afinal só
      dias. O abade, que noutro tempo era gordo e anafado, estava magro como um
      esqueleto. Perdera o sono e o apetite. Andava errante nos bosques
      lamentando a sua desgraça, quando se encontrou com o seu pastor.
      
 ―Bons dias senhor abade. Parece que está mais magro!
      Está doente?»
 
 ―Estou, meu caro Félix,
      estou muito doente.»
 
 ―Oh! meu rico amigo, eu lhe
      darei alguma erva que o possa curar.»
 
 ―Infelizmente
      não são ervas que eu preciso, mas resposta às minhas
      três perguntas.»
 
 ―É então
      latim?»
 
 ―Não, não é latim, senão
      os doutores tinham-me arranjado tudo.»
 
 ―Visto que não
      é latim, queira v. rev.ma dizer-me o que é: minha
      mãe era uma pobre de Cristo, mas tinha resposta para tudo.»
      
 Quando o abade lhe formulou as três perguntas, o pastor atirou
      com o barrete ao ar, e disse-lhe:
 
 ―Se é apenas
      isso, eu me encarrego de responder por si, e v. rev.ma pode
      continuar a engordar; mas para isso é necessário que eu
      vista o seu hábito.»
 
 Quando chegou o dia, o pastor
      disfarçado com o hábito do abade de S. Gall, foi introduzido
      na sala onde o imperador presidia o conselho imperial.
 
 ―Então,
      senhor abade, parece que está mais magro, deu-lhe muito que pensar
      a chave do [87]enigma? Vamos lá a ver
      a primeira pergunta: Quanto valho eu em dinheiro?»
 
      ―Senhor, o filho de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendido por
      trinta dinheiros, sua majestade vale à justa vinte e nove, só
      um dinheiro menos.»
 
 ―Bravo, senhor abade, a
      resposta é hábil, e na realidade não posso deixar de
      me mostrar satisfeito. Mas vamos à segunda pergunta, não há
      de ser tão fácil dar a resposta. Vamos lá a ver:
      quanto tempo levaria eu a dar a volta ao mundo?»
 
 ―Senhor,
      se vossa majestade se levantar ao romper do dia e puder seguir
      constantemente passo a passo o sol no seu giro, bastam-lhe vinte e quatro
      horas.»
 
 ―Decididamente, v. rev.ma
      é um grande finório, e desta vez, confesso-me vencido; mas a
      terceira, não dessas à que se responde com suposições.
      Quem lhe há de dizer o que eu estou pensando, e como me há
      de provar que este pensamento é um erro? Tem a palavra senhor
      abade.»
 
 ―Senhor: Vossa majestade imagina que eu sou
      o abade de S. Gall; está enganado, porque eu sou o seu pastor.»
      
 ―Mas então tu é que deves ser o abade de S.
      Gall, e desde já o ficas sendo.»
 
 ―Não
      sei latim, mas, se vossa majestade quer fazer-me um favor, peço-lhe
      outra coisa.»
 
 ―Não tens mais que falar.»
      
 ―Peço a vossa majestade que perdoe ao meu amigo.»
      
 Carlos Magno não era homem que faltasse à sua palavra.
      
 
 
 
 [88]
    
      
 
 Deixe-me agora, leitor, contar-lhe uma história―a
      história duma boneca!
 
 Não há muitos anos,
      mas ainda não era a Cordoaria do Porto o ameno jardim, onde a infância
      folga por entre maciços de flores e sob o sorriso do sol, sem que
      lhe enegreça o espírito a vista dos dois monumentos, que a
      meu ver simbolisam as duas mais horríveis calamidades, que podem
      aniquilar um homem―o hospital e a cadeia!―ainda não há
      muitos anos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da
      feira, divertindo-me a meu modo.
 
 Cansado das inúmeras
      figuras, que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica,
      dispunha-me a dar por findo o espectáculo, quando novos personagens
      me chamaram a atenção.
 
 Eram os meus vizinhos ricos.
      
 Aqui é preciso uma rápida explicação.
      
 Das famílias da minha vizinhança, só conheço
      três.
 
 Qual destas três famílias será
      mais feliz?...
 
 Pelo que tenho notado, não têm que
      invejar umas às outras.
 
 [89]São
      todas felizes; cada qual a seu modo.
 
 Vi, pois, chegar os meus
      vizinhos ricos. 
 Parou o carro, o criado saltou da almofada e
      veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a
      portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos braços a filhinha e depô-la
      no chão, e oferecendo, em seguida, a mão à esposa,
      para a ajudar a apear, dirigiu-se com ela e com a menina para a barraca
      onde eu estava.
 
 Não havia ali segredo a surpreender.
      
 Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que
      parecia agradecer àquela formosa criança a manifestação
      de qualquer desejo.
 
 No fim de meia hora possuía a minha
      pequena vizinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos
      abastadas.
 
 Tinha o necessário para montar completamente
      a casa duma boneca... rica.
 
 Faltava apenas a dona da
      casa―a boneca.
 
 Todo risos e atenções, o
      lojista apresentou o que tinha de melhor.
 
 Depois de muita
      hesitação e de, já com os olhos, já com a voz,
      consultar a mamã, a gentil criança acabou por escolher uma
      magnífica boneca de dois palmos de altura, com cabelo em bandeaux
      e olhos azuis.
 
 Uma boneca como as outras: cabeça e colo
      de massa, corpo de pelica recheada, braços e pernas de pau.
      
 Uma vive na loja da casa, que habito. É uma tribo de crianças,
      que fazem o martírio e a alegria da pobre mãe, e tem por
      chefe um honrado sapateiro.
 
 [90]Alguns
      deles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos, caídos
      do céu sobre um monte de lama.
 
 São os meus
      vizinhos pobres.
 
 A segunda compõe-se de marido,
      mulher e filha, e ocupa a casa imediata.
 
 É como se
      costuma dizer, gente que vai muito bem com a sua vida.
 
 A
      filha que terá dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e
      carnudas, cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que
      resistem à pressão.
 
 São os meus vizinhos
      remediados.
 
 A terceira é a dos meus vizinhos ricos.
      
 Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos, criados, nome inscrito
      nas listas dos accionistas de todos os bancos e no rol dos credores do
      estado―nada falta àquela ditosa gente!
 
 Compõe-se
      igualmente de marido, mulher e filha.
 
 Que formosa criança!...
      Terá oito anos.
 
 Franzina e pálida, com os cabelos
      negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos
      de dedos compridos e esguios, terminados por unhas duma cor de rosa
      transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado―provavelmente
      ainda a crescer―que há-de um dia ter o direito de lhas cobrir
      de beijos.
 
 Feita a compra, o pai pagou, chamou o criado, e este
      mudou todas aquelas preciosidades de sobre o balcão da barraca para
      dentro do carro.
 
 A boneca teve a honra de ser transportada pela
      aristocrática criança.
 
 [91]Saí
      dali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa variadíssimas
      considerações, sugeridas pela quase indiferença, com
      que aquela menina recebera brinquedos, que representavam um par de moedas.
      
 Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras
      raparigas da mesma idade namoravam uma destas bonecas de cabeça de
      pano, horrível artefacto português, em que os olhos são
      representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de
      retrós cor de rosa, a boca por outro de fio vermelho, e os cabelos
      por flocos de lã preta!
 
 Quando cheguei a casa, já
      na dos meus vizinhos remediados não havia luz.
 
 Na dos
      meus vizinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de três
      assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar,
      provocavam os ralhos da mãe.
 
 Quando, no dia seguinte,
      cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.
 
 Na
      rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na
      casa imediata não se via ninguém―estava a pequena na
      mestra; no palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla
      pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionária fazendo
      rodar, com auxílio duma linha, uma magnífica caleche
      descoberta, puxada por cavalos brancos.
 
 Dentro da caleche
      pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.
 
 ―«Aí
      está a tua caricatura, minha feiticeira!...»―disse eu
      de mim para mim. «Ensaias [92]nas
      bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a
      aprender a copiar... Sempre este mundo!...»
 
 Retirei-me da
      janela.
 
 Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma
      cena.
 
 A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia
      em que se vestia três e quatro vezes!
 
 Ao que eu, porém,
      achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!
      
 Chamava-lhe sr.a D. Luísa; dava-lhe excelência;
      sustentava finalmente com a boneca um destes diálogos de senhoras
      da alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.
      
 Um dia,―estava eu de costas voltadas para a janela dos meus
      vizinhos ricos―ouvi um grito de susto.
 
 Era devido
      a um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.
 
      Voltara-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da
      janela.
 
 O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a
      vítima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente
      de deixar cicatriz, e lembrando-se de que só lhe bastava querer,
      para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la
      com despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida
      e suplicante:
 
 «Não atire!... Dê-ma.»
      
 Era a minha pequena vizinha da casa pegada, de quem eu não
      dera fé até então.
 
 Assim invocada, a
      menina rica franziu levemente [93]as
      sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sítio donde
      vinha a súplica.
 
 Vendo uma criança, pouco mais ou
      menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros, respondeu:
 
      ―«Já não presta!... Está esmurrada!...»
      
 ―É o mesmo!... Dá-ma?...―bradou a outra,
      cujos olhos brilhavam de cobiça.
 
 ―«Dou...»―volveu
      a rica, encolhendo novamente os ombros.
 
 E, caminhando para o
      canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha, que
      tremia, receosa de que aquele tesouro fosse despedaçar-se nas lajes
      da rua.
 
 Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para
      exigir nova boneca; a outra, para mostrar à mãe a que ela
      ainda não podia acreditar, que fosse sua!
 
 Por espaço
      de meses foi a boneca a principal ocupação da nova dona.
      
 A pobre perdera na troca. Ia longe o tempo em ela se vestia quatro
      vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excelência!
      Chamavam-lhe sr.a D. Ana; falavam-lhe de arranjos domésticos,
      do desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas finalmente,
      completamente estranhas para ela!
 
 E a desgraçada perdia
      as cores; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azuis; mas o que mais a
      desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais escura:
      parecia uma nódoa, um estigma!
 
 Nos primeiros tempos,
      enquanto durou o vestido, [94]que trouxera no
      corpo, ainda não poderia enganar olhos pouco conhecedores.
      
 Não tardou, porém, que arrebiques de mau gosto, fitas
      velhas, rendas amareladas, chapéus impossíveis, viessem
      contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter equipado
      ao acaso, na loja duma adeleira.
 
 Mas o vestido foi-se tornando
      velho; desapareceu o brilho, e com ele as ondulações do moiré,
      até que, um belo dia, vi a boneca vestida de cassa―-no
      Inverno!―xaile e manta na cabeça.
 
 Muito mal lhe
      ficava aquilo!... Àquela boneca custava-lhe de certo o ver-se tão
      mal arranjada.
 
 Eu retirei-me da janela soltando um suspiro, e
      balbuciei:
 
 ―É justo!... Cada qual segundo as suas
      posses.»
 
 Por esse tempo, entrei em relações
      com o meu vizinho sapateiro.
 
 O honrado homem soubera, que eu me
      queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a
      primeira ocasião, para me pedir desculpa.
 
 Vendo-me
      conversar com o honrado pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de
      nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave
      risco de sofrer as consequências da sua travessa familiaridade.
      
 Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita
      de onze anos, com quem simpatizei logo à primeira vista.
 
      Chama-se Maria.
 
 Por um destes acasos da Providência, que
      parece [95]às vezes comprazer-se em
      criar contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.
      
 Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do
      sapateiro, fiquei deveras pasmado quando o pai ma apresentou.
 
 E
      bem verdade que ele conhecia o valor daquela criança, porque havia
      verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse: «Esta
      é a minha Maria!»
 
 E tinha razão!
 
      Não podia ser mais discreta do que já nesse tempo era.
      
 ―É quem vale à mãe!...―acrescentou
      o velho.»―Ali, onde a vê, faz o serviço duma
      mulher!... Há seis meses, quando a minha santa esteve doente―bem
      pensei que não arribasse!―a pequena era quem cozinhava e
      olhava pelos irmãos!... E caridade como ela tem!?... Olhe que
      aquela pequena esteve três dias sem se deitar... ali... ao pé
      da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, que ela não a
      queria deixar!...»
 
 E o desvanecido pai enxugou, com a
      manga da camisa, uma lágrima, que, havia muito, hesitava sobre se
      sim ou não se devia despenhar.
 
 Fazia gosto ver aquela
      pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por
      um lenço branco.
 
 Desde que o pai me deu tão boas
      informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da
      porta da loja, sem dar pelo menos os bons dias à pequena.
      
 Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma
      boneca deitada nos joelhos.
 
 [96]―Eu
      conheço aquela boneca!...―disse eu de mim para mim.
      
 E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:
      
 ―Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...
 
 Foi
      ali a menina da vizinha!―respondeu a pequenita, corando de prazer.
      
 Era escusado dizer-mo.
 
 Maria pegara na boneca e voltara-a
      de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá estava a
      mancha, o estigma cada vez mais visível na fronte.
 
 De
      tempos a tempos, nas raras horas de descanso, Maria entretinha-se com ela.
      
 ―Quem te viu e quem te vê!...―pensava eu.
      
 Às vezes, se Maria se descuidava e os irmãos lha
      podiam apanhar, que tratos que sofria a desgraçada!
 
 Roçada
      por aquelas mãos, de que um carvoeiro se envergonharia, empregada
      como péla, submetida a torturas, era, ainda assim, singularíssimo
      o aspecto da triste!
 
 Dava ares duma duquesa que, por
      necessidade, houve sido levada a fraternizar com o povo.
 
 A mísera
      mudara mais uma vez de nome!...
 
 De sr.a D. Ana
      passara a ser sr.a Rosinha e tratavam-na por vossemecê.
      
 Trajava vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço
      na cabeça.
 
 Era um prazer para mim o escutar as
      conversas, que Maria sustentava com a boneca.
 
 Esta, umas vezes,
      representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de
      perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por
      estar tudo tão caro, por haver [97]falta
      de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assuntos, finalmente, que
      mais familiares eram à pequena.
 
 Outra vezes passava a
      boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar água
      à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a
      despedir.
 
 Já o leitor vê que, apesar da bondade
      Maria, deixara de ser feliz.
 
 Iam longe os bons tempos em que
      ela, rica, morava no palácio vizinho!
 
 Desmaiada de
      cores, quase perdido o cabelo, semi-apagados os olhos, desfeito o carmim
      dos lábios, a boneca não prometia longa duração.
      
 Foi este pelo menos, o prognóstico que fiz a última
      vez que a vi, tentando em vão agradar à última dona
      que o seu destino lhe dera.
 
 Coitada!... Bem longe estava de lhe
      imaginar o fim!
 
 Um dia chovia a cântaros!―o
      enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para
      cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.
      
 Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e
      olhava melancolicamente para a água negra, que corria. Nisto ouvi
      um grito, que partia da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto...
      Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço
      voando, e foi cair no leito do enxurro...
 
 Olhei... Era a
      boneca!...
 
 A mísera, arrastada pela água, vogou
      rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho envolveu-a,
      [98]e, depois de a fazer girar três ou
      quatro vezes, obrigou-a a passar pelo estreito, traçado entre a
      pedra e o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir
      sumir-se nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na
      passagem!
 
 Será pieguice, será o que o leitor
      quiser; mas, confesso-lhe, que me impressionou o fim da pobre boneca.
      
 Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado à
      vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:
      
 ―Porque deitaste fora a boneca, Maricas!?
 
 ―Não
      fui eu...―balbuciou a pequena, chorando.―Foi ali o Joaquim!...
      
 ―E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...
 
 ―Ora!...―respondeu
      o garoto com enfado.―Ora!... Estava velha... e feia!...
 
      Curvei a cabeça ante aquela razão, e segui o meu caminho.
      
 Pobre boneca!
 
 
 
 
 [99]
    
      
 
 Um dia Nosso Senhor Jesus Cristo, viajando na Alsácia,
      foi surpreendido pela noite à entrada duma aldeia. Procurou dum
      lado para outro uma casa, onde pudesse pedir pousada, mas as portas
      estavam já todas fechadas, não se via nem um raio de luz
      através das janelas, tudo estava adormecido. Apenas no fim dum beco
      se ouvia o barulho do mangual com que se bate o trigo, e nesse sítio
      havia uma pequena luz. Nosso Senhor dirigiu-se para lá, chegou ao pé
      do muro duma quinta, e bateu à porta. Foi um camponês que lha
      veio abrir.
 
 ―Fazia favor, disse-lhe o bom Jesus, de me
      dar agasalho por esta noite? Não se havia de arrepender.»
      
 E acrescentou:
 
 ―Visto que já todos estão
      deitados, para que é que você está ainda a trabalhar?»
      
 ―Ora, respondeu o camponês, soube ontem à noite
      que ia ser perseguido por um credor desapiedado, se lhe não pagasse
      amanhã o que lhe devo, portanto eu e meus filhos estamos a bater o
      pouco trigo que colhi, para o vender no mercado, e pagar a minha dívida.
      Depois disto não nos fica nada, [100]e
      não sei como havemos de atravessar o Inverno. Seja o que Deus
      quiser!»
 
 Ao dizer isto o camponês limpava o suor da
      testa, e passava a mão pelos olhos arrasados de lágrimas. O
      Senhor teve dó dele, e disse-lhe:
 
 ―«Não
      desanimes. Quando te pedi hospitalidade, disse-te que não te havias
      de arrepender de ma ter dado. Vou provar-to.»
 
 Pegou na
      candeia, que estava suspensa numa das traves do celeiro, e aproximou-a do
      trigo.
 
 ―Que vai fazer? disseram assustados os
      trabalhadores, vai deitar fogo a tudo!»
 
 Mas no mesmo
      instante, da palha, que eles receavam ver inflamar-se, de cada espiga,
      desceu uma chuva de grãos prodigiosa. À vista dum tal
      milagre os camponeses maravilhados caíram de joelhos.
 
      ―Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua
      pobreza o forasteiro que veio ter contigo como um pobre mendigo, serás
      recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que te
      enriquece.»
 
 Dito isto desapareceu.
 
 E a chuva
      dos grãos não parou em toda a noite, e fez um monte tão
      alto como a igreja.
 
 O camponês pagou as suas dividas,
      comprou terras, e construiu uma bela casa. Era rico, e tornou-se orgulhoso
      e altivo com os pobres. Ele e seus filhos adquiriram costumes perdulários,
      tanto e tanto fizeram, que se arruinaram, e, como tinham sido maus nos
      tempos em que eram ricos, ninguém os ajudou na sua miséria.
      Uma noite o velho camponês, que bebera enormemente, entrou [101]no celeiro, e, recordando-se do milagre que o
      enriquecera, imaginou que também ele o poderia fazer. Agarrou na
      candeia, aproximou-a dum feixe de palha, comunicou-se o fogo, ardeu a casa
      e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na miséria mais
      absoluta.
 
 
 
 
 [102]
    
      
 
 ―Quem procura sempre encontra, diz um velho provérbio;
      quero ver por experiência, disse um dia um rapaz, se esta máxima
      é verdadeira.
 
 Pôs-se a caminho, e foi
      apresentar-se ao governador duma grande cidade.
 
 ―Senhor,
      disse-lhe ele, há muitos anos que vivo tranquilo e solitariamente,
      e a monotonia fatigou-me. Meu amo disse-me muitas vezes―Quem
      procura sempre encontra, e quem porfia mata caça. Tomei
      uma grande resolução. Quero casar com a filha do rei.
      
 O governador mandou-o embora, imaginando que era um doido.
      
 O rapaz voltou no dia seguinte, no outro e no outro, e assim durante
      uma semana, sempre com a mesma vontade inabalável, até que o
      rei ouviu falar o rapaz da sua louca pretensão. Surpreendido com
      uma ideia tão extravagante, e, querendo divertir-se, disse-lhe o
      rei:
 
 ―Que um homem distinto pela hierarquia, pela
      coragem, pela ciência, pensasse em casar com uma princesa, nada mais
      natural. Mas tu, quais são os teus títulos? Para seres o
      marido [103]de minha filha é necessário
      que te distingas por alguma qualidade especial ou por um acto de valor
      extraordinário. Ouve. Perdi há muito tempo no rio um
      diamante dum valor incalculável. Aquele que o encontrar obterá
      a mão de minha filha.
 
 O rapaz, contente com esta
      promessa, foi estabelecer-se nas margens do rio; logo de manhã começava
      a tirar água com um balde pequeno, e deitava-a na areia, e, depois
      de ter assim trabalhado durante horas e horas, punha-se a rezar.
      
 Os peixes inquietos ao verem tão grande tenacidade, e
      receando que chegasse a esgotar o rio, reuniram-se em conselho.
 
      ―Que quer este homem? perguntou o rei dos peixes.»
 
      ―Encontrar um diamante que caiu ao rio.»
 
 ―Então,
      respondeu o velho rei, sou de opinião que lho entreguem, porque
      vejo qual é a têmpera da vontade deste rapaz; mais fácil
      seria esgotar as últimas gotas do rio, do que desistir da sua
      empresa.»
 
 Os peixes deitaram o diamante no balde do
      rapaz, que casou com a filha do rei.
 
 
 
 
 [104]
    
      
 
 Morreu uma vez um rei, deixando quatro filhos, e sem ter
      designado o sucessor. Reuniu-se a corte, e decidiu-se que a coroa devia
      pertencer, não ao mais velho dos quatro filhos, mas sim ao mais
      digno.
 
 Resolveram além disso que o cadáver do rei
      fosse posto de pé contra um muro, e que o príncipe que
      acertasse melhor com uma flecha naquele alvo, seria o escolhido para
      sucessor.
 
 Começou o mais velho. Esticou a corda do arco,
      apontou durante muito tempo, e a flecha foi atravessar a mão
      esquerda do defunto. O príncipe soltou grito de alegria, cuidando
      que seus irmãos atirariam pior, e que por conseguinte seria ele
      quem viria a reinar.
 
 O segundo acertou em cheio na cara do rei,
      soltando um grito ainda mais alegre do que o outro príncipe.
      
 O terceiro varou o coração de seu pai, e os seus
      gritos de triunfo quase que chegavam ao céu, porque lhe parecia
      impossível acertar melhor.
 
 Quando chegou a vez do quarto
      filho, tiveram de lhe meter nas mãos as flechas e o arco: mas,
      [105]desde que olhou para o alvo, arrojou as
      armas longe de si, e desatou a chorar:
 
 ―«Oh! meu
      pai! meu querido pai! exclamou ele, como poderei eu jamais consolar-me de
      ver o teu corpo crivado de flechas pela mão de teus próprios
      filhos!»
 
 Os grandes da corte ouvindo isto proclamaram-no
      rei, como sendo o mais digno.
 
 
 
 
 [106]
    
      
 
 O primeiro véu de Maria era dum linho mais alvo do que
      a neve. Bordara-o com as suas mãos, e ornara-o com uma grinalda de
      flores de seda tão bem imitadas, que as abelhas, iludidas, vinham
      pousar-lhe em cima.
 
 Este véu branco só o trouxe
      uma vez, no dia da sua primeira comunhão.
 
 O segundo véu
      de Maria era de lã negra. Principiou-o no mesmo dia em que sua mãe
      lhe morrera, deixando-a sozinha, sem amparo, na casa triste e abandonada.
      Era bordado de perpétuas roxas, como as dos sepulcros de mármore,
      e os olhos de Maria tinham-no orvalhado com todas as suas lágrimas.
      
 O véu negro só o trouxe uma vez,―no dia em que
      se tornou esposa de Jesus no convento da Avé-Maria.
 
 O
      terceiro véu era feito dum retalho do azul celeste, bordado de
      estrelas, e perfumado com aromas suavíssimos.
 
 Foi o seu
      anjo da guarda, que lho deu no mesmo dia em que ela entrou no paraíso.
      
 
 
 
 [107]
    
      
 
 Um dia três pequenos iam juntos para a escola, e
      disseram uns aos outros, que não havia nada no mundo mais
      aborrecido que estudar: «Vamos para o bosque que encontraremos
      lá toda a espécie de lindos bichinhos, que não fazem
      outra coisa senão brincar, e nós brincaremos com eles.»
      
 Foram logo, e passaram sem fazer caso ao pé da activa formiga
      e da abelha diligente. Mas o besoiro, que eles convidaram a vir patuscar,
      disse-lhes:
 
 ―Brincar? Preciso construir com estas ervas
      uma ponte nova, porque a outra já não está sólida.»
      
 ―Eu, disse o rato, tenho que fazer as minhas provisões
      para o Inverno.»
 
 ―Eu, disse dali a pomba, tenho
      muitas coisas que levar para o meu ninho.»
 
 ―Eu,
      disse a lebre, gostava bem de me ir divertir com vocês, mas ainda
      hoje não lavei o meu focinho. Antes de mais nada, tenho que fazer a
      minha toilette.»
 
 E tu, lindo regato, disseram os
      pequenos desertores, [108]que passas o tempo
      a saltar e a tagarelar, também não queres brincar connosco?»
      
 ―Estes pequenos são tolos, disse o regato. Como? Vocês
      então imaginam que eu não tenho que fazer? De noite ou de
      dia, não descanso nem um momento. Tenho que dar de beber aos homens
      e aos animais, às colinas, aos vales, aos campos e aos jardins.
      Tenho que apagar os incêndios, tenho que fazer mover as forjas, os
      moinhos, as serralharias. Nem hoje acabara, se lhes quisesse contar o que
      tenho que fazer. Não posso perder um instante. Adeus, adeus. Estou
      com muita pressa.»
 
 Os pequenos, desconcertados,
      puseram-se a olhar para o ar, e viram um pintassilgo, em cima dum ramo.
      
 ―Olha! tu, que não tens nada que fazer, queres brincar
      connosco?»
 
 ―Nada que fazer? vocês estão
      a mangar comigo, disse o pintassilgo. Todo o dia tenho que apanhar moscas
      para comer. Tenho além disso que tomar parte no concerto dos
      passarinhos, tenho que alegrar o operário com o meu chilrear, e
      tenho que adormecer as crianças com uma outra cantiga, que à
      noite e de madrugada celebre a bondade do Criador. Ide-vos embora, preguiçosos,
      ide cumprir o vosso dever, e não tornem a vir incomodar os
      habitantes das florestas, que cada um tem a sua tarefa a desempenhar.»
      
 Os pequenos aproveitaram a lição, e compreenderam que
      o prazer só é legítimo, quando é a recompensa
      do trabalho.
 
 
 
 
 [109]
    
      
 
 Era uma vez uma rapariguinha muito bonita e cheia de bondade,
      a quem sua mãe e sua avó adoravam extremosamente. A boa da
      avozinha, que passava o tempo a imaginar o que poderia agradar à
      neta, deu-lhe um dia um chapéu de veludo vermelho. A pequenita
      andava tão contente com o seu chapéu novo, que já não
      queria pôr outro, e começaram a chamar-lhe a menina do
      chapelinho encarnado.
 
 A mãe e a avó moravam em
      duas casas separadas por uma floresta de meia légua de comprido.
      Uma manhã a mãe disse à pequenita:
 
 ―Tua
      avó está doente, e não pôde vir ver-nos. Eu fiz
      estes doces, vai levar-lhos tu com esta garrafa de vinho. Toma cuidado não
      quebres a garrafa, não andes a correr, vai devagarinho e volta
      logo.»
 
 ―Sim, mamã, respondeu ela, hei-de
      fazer tudo como deseja.»
 
 Atou o seu avental, meteu num
      cestinho a garrafa e os doces, e pôs-se a caminho. No meio da
      floresta um lobo aproximou-se dela. A pequenita, que nunca vira lobos,
      olhou para ele sem medo algum.
 
 [110]―Bons
      dias, chapelinho encarnado.»
 
 ―Bons dias, meu
      senhor, respondeu delicadamente a pequena.»
 
 ―Onde
      vais tão cedo?»
 
 ―A casa da minha avó
      que está doente.»
 
 ―E levas-lhe alguma coisa?»
      
 ―Levo, sim senhor; levo-lhe uns bolos e uma garrafa de vinho
      para lhe dar forças.»
 
 Diz-me onde mora a tua, avó,
      que também a quero ir ver.»
 
 ―É perto,
      aqui no fim da floresta. Há ao pé uns carvalhos muito
      grandes, e no jardim há muitas nozes.»
 
 ―Ah!
      tu é que és uma bela noz, disse consigo o lobo. Como eu
      gostava de te comer.» Depois continuou em voz alta:―Olha, que
      bonitas árvores e que lindos passarinhos. Como é bom passear
      nas florestas, e então que quantidade de plantas medicinais que se
      encontram!»
 
 ―O senhor, é com certeza um médico,
      respondeu a inocente pequenita, visto que conhece as ervas medicinais.
      Talvez me pudesse indicar alguma que fizesse bem a minha avó.»
      
 ―Com certeza, minha filha, olha, aqui está uma, e esta
      também, e aquela.» Mas todas as plantas que o lobo indicava,
      eram plantas venenosas. A pobre criança, queria-as apanhar para as
      levar a sua avó.
 
 ―Adeus, meu lindo chapelinho
      encarnado, estimei muito conhecer-te. Com grande pena minha, tenho de te
      deixar para ir ver um doente.»
 
 E pôs-se a correr em
      direcção da casa da avó, enquanto que a pequerrucha
      se entretinha em apanhar as plantas que ele tinha indicado.
 
      [111]Quando o lobo chegou à porta da
      velha, achou-a fechada e bateu, mas a avó não se podia
      levantar da cama, e perguntou: Quem está aí?»
      
 ―É o chapelinho encarnado, respondeu o lobo imitando a
      voz da pequerrucha. A mamã manda-te bolos e uma garrafa de vinho.»
      
 ―Procura debaixo da porta disse a avó, que encontrarás
      a chave.»
 
 Encontrou-a, abriu a porta, engoliu duma bocada
      a pobre velha inteira, e depois, vestindo o fato que ela costumava usar,
      deitou-se na cama.
 
 Pouco depois entrou a pequenita, assustada e
      admirada de encontrar a porta aberta, porque sabia o cuidado com que a avó
      a costumava ter fechada.
 
 O lobo tinha posto uma touca na cabeça,
      que lhe escondia uma parte do focinho, mas o que lhe ficava descoberto era
      horrível.
 
 ―Ai! avozinha, disse a criança,
      porque tens tu as orelhas tão grandes?»
 
 ―É
      para te ouvir melhor, minha filha.»
 
 ―E porque estás
      com uns olhos tão grandes?»
 
 ―É para
      te ver melhor.»
 
 ―E para que estás com os braços
      tão grandes?»
 
 ―É para te poder abraçar
      melhor.»
 
 ―E Jesus! para que tens hoje uma boca tão
      grande e uns dentes tão agudos?»
 
 ―É
      para te comer melhor.» A estas palavras o lobo arremessou-se
      à pobre pequena, e engoliu-a. Como estava repleto, adormeceu, e
      começou a ressonar muito alto. Um caçador que passava por
      acaso, perto da casa, e que ouviu aquele barulho, disse consigo: A pobre
      velha está com um pesadelo, [112]está
      pior talvez, vou ver se precisa dalguma coisa.» Entra, e vê o
      lobo estendido na cama.
 
 ―Olá, meu menino, diz ele:
      há muito tempo que te procuro.»
 
 Armou a sua
      espingarda, mas parando logo: Não, disse ele, não vejo a
      dona da casa. Talvez o lobo a engolisse viva. E em lugar de matar o animal
      com uma bala, pegou na sua faca de mato, e abriu-lhe cuidadosamente a
      barriga. Apareceu logo o chapelinho encarnado e saltou para o chão,
      gritando:
 
 ―Ai! que sítio medonho onde eu estive
      fechada!
 
 A avó saiu também contentíssima
      por ver outra vez a luz do dia.
 
 O lobo continuava a dormir
      profundamente, e o caçador meteu-lhe então duas grandes
      pedras na barriga, coseu tudo, e escondeu-se com a avó e a neta
      para verem o que se ia passar.
 
 Decorrido um instante o lobo
      acordou, e como tinha sede, levantou-se para ir beber ao lago. Ao andar
      ouvia as pedras baterem uma na outra, e não podia compreender o que
      aquilo era; com o peso, caiu no lago, e afogou-se.
 
 O caçador
      tirou-lhe a pele, comeu os bolos e bebeu o vinho com a velha e a sua neta.
      A velha sentia-se remoçar, e o chapelinho encarnado prometeu não
      tornar a passar na floresta, quando sua mãe lho proibisse.
      
 
 
 
 [113]
    
      
 
 Andando um dia Carlos Magno à caça com uma
      comitiva numerosa, perseguiu um veado, que dava tais saltos, e corria por
      tal forma, que, apesar da ligeireza do seu cavalo, o rei perdeu-lhe
      completamente a pista. Foi só então que viu que estava só,
      tendo a sua corte ficado muito para traz; sentindo-se fatigado, entrou ao
      cair da noite numa choupana solitária no meio da floresta. Em roda
      da lareira estavam deitados quatro ladrões. Os salteadores
      levantaram-se logo, como despertados pelo barulho da entrada do viajante;
      cada um deles tinha tido um sonho, que lhe quiseram logo contar.
      
 O primeiro que tomou a palavra exprimiu-se desta maneira:
 
      ―No meu sonho, tirava eu o capacete de ouro à pessoa que
      acaba de entrar aqui, e punha-o na minha cabeça.»
 
      ―Eu, disse o outro, sonhei que vestia a sua couraça.»
      
 ―E eu que estava pondo o seu manto.»
 
 ―E
      eu, disse o quarto ladrão, para lhe fazer favor, passava em roda do
      meu pescoço aquela [114]pesada cadeia
      de ouro, da qual está pendurada a sua trompa de caça.»
      
 ―Vejo bem, disse o imperador, que têm tenção
      de me roubar tudo, e mesmo a vida. Reconheço que estou em poder de
      vocês, e que toda e qualquer resistência seria inútil.
      Não lhes peço senão uma coisa, é que me deixem
      tocar pela última vez na minha trompa de caça.»
      
 Os salteadores responderam que consentiam, visto que o último
      pedido dum moribundo deve ser respeitado.
 
 Carlos Magno levou
      à boca a sua magnífica trompa de marfim, e tirou dela sons tão
      fortes e sonoros, que em menos dalguns minutos todos os seus companheiros
      de caça e a sua comitiva estavam ao pé dele.
 
      ―Agora, disse o imperador, dirigindo-se aos salteadores, agora também
      eu devo contar o sonho que tive. Sonhei que vocês todos iam ser
      enforcados diante deste casebre.»
 
 E o sonho realizou-se
      imediatamente.
 
 
 
 
 [115]
    
      
 
 Era uma vez um rei, que quis levantar uma igreja magnífica
      em honra da Virgem, decretando que ninguém nos seus estados pudesse
      contribuir para a obra, ainda mesmo com a mais pequena quantia. Quando o
      edifício se concluiu, enorme, soberbo, grandioso, mandou o rei
      gravar numa pedra do mármore uma inscrição em letras
      de ouro, que dizia que só ele, e mais ninguém, tinha levado
      a cabo aquela obra monumental. Mas na noite seguinte o nome do rei foi
      apagado da inscrição, e substituído por o duma pobre
      mulherzinha do povo. O rei no dia seguinte tornou a mandar pôr o seu
      nome na inscrição, e de novo foi substituído pelo da
      pobre mulher; à terceira vez sucedeu o mesmo. O rei, cheio de cólera,
      ordenou então que lhe trouxessem a mulher à sua presença:
      
 ―Proibi a todos os meus vassalos, disse-lhe ele, que contribuíssem
      fosse com o que fosse para a edificação desta igreja; vejo
      que não cumpriste as minhas ordens.»
 
 ―«Senhor,
      respondeu a velhinha toda trémula, eu respeitei as vossas ordens,
      apesar da mágoa [116]que sentia por não
      poder oferecer o meu pequenino óbolo em honra da Virgem; mas
      julguei não desobedecer a vossa majestade, deixando por vezes de
      jantar para comprar um pouco de feno, que eu levava às escondidas
      aos bois que conduziam as pedras destinadas à construção
      da igreja.»
 
 ―«O teu nome é mais digno
      do que o meu de figurar em letras de ouro na inscrição do
      monumento, disse-lhe o rei.»
 
 Mas na noite seguinte uma mão
      invisível restabeleceu na lápide da igreja o nome do rei,
      que desde então lá se conserva ainda.
 
 
 
      
 [117]
    
      
 
 Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos,
      por todos terem nascido da mesma colher de chumbo. Vede-os: que atitude
      marcial, de espingarda ao ombro, olhar fixo, e ricos uniformes azuis e
      vermelhos! A primeira coisa que ouviram neste mundo, quando se levantou a
      tampa da caixa em que eles estavam, foi este grito: «Olha soldados
      de chumbo!» que soltou um rapazito, batendo as palmas de alegria.
      Tinham-lhos dado de presente no dia dos anos, e o seu divertimento era
      formá-los sobre a mesa, em linha de batalha. Todos os soldados se
      pareciam maravilhosamente uns com os outros, excepto um, que tinha uma
      perna de menos, porque o tinham deitado na forma em último lugar, e
      já não havia chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os
      outros não estavam mais firmes nas duas pernas do que ele na sua
      única, e é este o que precisamente nos interessa.
 
      Sobre a mesa em que os nossos soldados estavam formados havia mil outros
      brinquedos, mas o mais bonito de todos, era um lindíssimo castelo
      de papel. Pelas suas pequeninas janelas via-se-lhe [118]o
      interior dos salões. À volta era circundado duma floresta em
      miniatura, que se reflectia poeticamente num pedaço de espelho que
      fingia um lago, onde nadavam pequeninos cisnes de cera. Tudo isto era
      encantador, mas não tanto como uma menina que estava à
      porta, e que era também de papel, vestida com um lindo vestido de
      cassa, apertado com um cinto de fivela azul. A menina tinha os braços
      arqueados, porque era dançarina, e tinha uma perninha levantada a
      tal altura, que o soldado de chumbo não a podia ver, e imaginou
      que, como ele, não tinha senão uma perna.
 
 ―Ali
      está a mulher que me convém, pensou ele, mas é uma
      grande fidalga. Mora num palácio, eu numa caixa em companhia de
      vinte e quatro camaradas, e não haveria cá lugar para ela.
      No entanto preciso conhecê-la.»
 
 Deitou-se atrás
      duma caixa de tabaco, e dali podia ver à sua vontade a elegante dançarina,
      que estava sempre num pé só, sem perder o equilíbrio.
      
 À noite todos os outros soldados foram metidos na caixa, e as
      pessoas da casa foram deitar-se. Apenas os brinquedos perceberam isto,
      começaram a divertir-se, fizeram guerras, e a final deram um baile.
      Os soldados de chumbo mexiam-se, e remexiam-se na sua caixa, porque
      queriam lá ir; mas como haviam eles tirar a tampa? O quebra-nozes
      começou a dar cabriolas e saltos mortais, o lápis traçou
      mil arabescos fantásticos numa lousa, enfim o barulho tornou-se tal
      que o canário acordou, e pôs-se a cantar. Os únicos
      que [119]estavam quietos eram o soldado de
      chumbo e a dançarinazinha. Ela no bico do pé, e ele numa
      perna só, a espreitá-la.
 
 Deu meia noite, e zás,
      a tampa da caixa de rapé levanta-se, e em lugar de rapé,
      saiu um feiticeirozinho preto. Era um brinquedo de surpresa.
 
      ―Soldado de chumbo, disse o feiticeiro, trata de olhar para outro sítio.»
      
 Mas o soldado fez que não ouvia.
 
 ―Espera até
      amanhã, e verás o que te acontece, continuou o feiticeiro.»
      
 No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puseram o soldado
      de chumbo à janela, mas de repente ou por influência do
      feiticeiro ou por causa do vento caiu à rua de cabeça para
      baixo. Que tombo! Ficou com a perna no ar, o peso do corpo todo sobre a
      barretina, e com a baioneta enterrada entre duas lajes.
 
 A
      criada e o rapazito foram lá abaixo procurá-lo, mas
      estiveram quase a esmagá-lo, sem darem por ele. Se o soldado
      tivesse gritado: «Cautela!» te-lo-íam achado, mas ele
      julgou que seria desonrar a farda. A chuva começou a cair em
      torrentes, e tornou-se num verdadeiro dilúvio. Depois do aguaceiro
      passaram dois garotos.
 
 ―Olá! disse um deles, um
      soldado de chumbo por aqui! Vamos fazê-lo navegar.»
 
      Construíram um barco dum bocado de jornal velho, meteram o soldado
      de chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo regato abaixo. Os dois
      garotos corriam ao lado, e davam grito de prazer. Que ondas! Santo Deus!
      Que força de corrente! Mas também tinha chovido tanto! O
      barco jogava [120]duma maneira horrorosa, mas
      o soldado de chumbo conservava-se impassível, com os olhos fixos e
      a espingarda ao ombro.
 
 De repente o barco foi levado para um
      cano, onde era tão grande a escuridão como na caixa dos
      soldados.
 
 ―Onde irei eu parar? pensou ele. Foi o tratante
      do feiticeiro que me meteu nestes trabalhos. Se, apesar de tudo, aquela
      linda menina estivesse no barco, não importava, ainda que a escuridão
      fosse duas vezes maior.»
 
 Dali a pouco apresentou-se um
      enorme rato de água; era um habitante do cano.
 
 ―Venha
      o teu passaporte.»
 
 Mas o soldado de chumbo não
      disse nada, e agarrou com mais força na espingarda. O barco
      continuava o seu caminho, e o rato perseguia-o, rangendo os dentes, e
      gritando às palhas, e aos cavacos:―Façam-no parar, façam-no
      parar! Não pagou a passagem, não mostrou o passaporte.»
      
 Mas a corrente era cada vez maior, o soldado via já a luz do
      dia, e sentia ao mesmo tempo um barulho capaz de assustar o homem mais
      valente. Havia na extremidade do cano uma queda de água tão
      perigosa para ele, como é para nós uma catarata.
      Aproximava-se dela cada vez mais, sem poder parar, com uma rapidez
      vertiginosa. O barco lançou-se sobre a queda de água, e o
      pobre soldado firmava-se o mais possível, e ninguém se
      atreveria a dizer que o tinha visto fechar os olhos com o susto.
      
 O barco, depois de ter andado à roda durante muito tempo,
      encheu-se de água, e estava a ponto [121]de
      naufragar. A água já chegava ao pescoço do soldado, e
      o barco afundava-se cada vez mais. O papel desdobrou-se, e a água
      passou por cima da cabeça do nosso herói. Nesse momento
      supremo, pensou na gentil dançarinazinha, e pareceu-lhe ouvir uma
      voz que dizia:
 
 ―Soldado: o perigo é enorme, a
      morte espera-te.»
 
 O papel rasgou-se, e o soldado passou
      através dele. Nesse momento foi devorado por um grande peixe.
      
 Lá é que era escuro, ainda mais que dentro do cano. E
      além disso, que talas em que ele estava metido! Mas, sempre intrépido,
      o soldado estendeu-se ao comprido com a espingarda ao ombro.
 
 O
      peixe mexia-se e remexia-se, dava saltos de meter medo, até que
      enfim parou, e pareceu que o atravessava um relâmpago. Apareceu a
      luz do dia, e alguém exclamou:
 
 ―Olha um soldado de
      chumbo!»
 
 O peixe tinha sido pescado, exposto na praça,
      vendido, e levado para a cozinha, e a cozinheira tinha-o aberto com uma
      enorme faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a
      sala, onde toda a gente quis admirar esse homem extraordinário, que
      tinha viajado na barriga dum peixe. No entretanto o soldado não se
      sentia orgulhoso. Colocaram-no em cima da mesa, e ali―tanto é
      verdade que acontecem coisas extraordinárias neste mundo―achou-se
      na mesma sala, de cuja janela tinha caído. Reconheceu os pequenos e
      os brinquedos que estavam em cima da mesa, o lindo palácio, e a
      adorável dançarina sempre [122]de
      perna no ar. O soldado de chumbo ficou tão comovido, que de boa
      vontade teria derramado lágrimas de chumbo, mas não era
      conveniente. Olhou para ela, ela olhou para ele, mas não disseram
      uma palavra um ao outro.
 
 De repente um dos pequenos pegou nele,
      e sem motivo algum deitou-o no fogão; eram obras do feiticeiro da
      caixa do rapé.
 
 O soldado de chumbo lá estava
      perfilado, alumiado por um clarão sinistro, e sofrendo um calor
      terrível. Todas as cores lhe tinham desaparecido, sem que se
      pudesse dizer, se era por causa das suas viagens, ou por causa dos seus
      desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que também
      olhava para ele. Sentia-se derreter, mas, sempre intrépido,
      conservava a espingarda ao ombro. De repente abriu-se uma porta, o vento
      arremessou a dançarina ao fogão para junto do soldado, que
      desapareceu no meio das labaredas. O soldado de chumbo, já não
      era mais que uma pequena massa informe.
 
 No dia seguinte, quando
      a criada veio tirar a cinza, encontrou um objecto que tinha o feitio dum
      pequeno coração de chumbo, e tudo o que restava da dançarina
      era a fivela do cinto azul que o lume tinha enegrecido.
 
 
      
 
 [123]
    
      
 
 João era filho duma pobre viúva, bom rapaz, mas
      um pouco simplório. A gente da aldeia chamava-lhe por brincadeira
      João Pateta. Um dia sua mãe mandou-o à feira comprar
      uma foice. À volta, começou a andar com a foice à
      roda, de maneira que a foice caiu em cima duma ovelha, e matou-a.
      
 ―Pateta, disse-lhe sua mãe, o que deverias ter feito
      era pôr a foice em um dos carros de palha ou de feno dalgum dos
      vizinhos.»
 
 ―Perdão, mãe, respondeu
      humildemente João, para a outra vez serei mais esperto.»
      
 Na semana seguinte mandaram-no comprar agulhas, recomendando-lhe que
      as não perdesse.
 
 ―Fique descansada. E voltou todo
      orgulhoso.»
 
 ―Então, João, onde estão
      as agulhas?»
 
 ―Ah! estão em lugar seguro.
      Quando saí da loja em que as comprei, ia a passar o carro do
      vizinho carregado de palha; meti lá as agulhas, não podem
      estar em sítio melhor.»
 
 ―De certo, estão
      em lugar de tal modo seguro, que não há meio de as tornar a
      ver. Devias tê-las espetado no chapéu.»
 
      [124]―Perdão, respondeu João,
      para a outra vez, hei-de ser mais esperto.»
 
 Na outra
      semana, por um dia de calor, João foi dali uma légua comprar
      uma pouca de manteiga. Lembrando-se do último conselho de sua mãe,
      pôs a manteiga dentro do chapéu e o chapéu na cabeça.
      Imagine-se o estado em que voltou para casa, com a cara a escorrer
      manteiga derretida.
 
 A mãe já tinha medo de o
      mandar fazer qualquer recado. No entanto um dia resolveu-se a mandá-lo
      à feira vender duas galinhas.
 
 ―Ouve bem, não
      vendas pelo primeiro preço. Espera que te ofereçam outro.»
      
 ―Está entendido, respondeu João.»
      
 Foi para a feira. Um freguês chegou-se a ele.
 
      ―Queres seis tostões por essas galinhas?»
 
      ―Ora adeus! minha mãe recomendou-me, que não aceitasse
      o primeiro preço, mas que esperasse o segundo.»
 
      ―E tens muita razão. Dou-te um cruzado.»
 
      ―Está bem. Parece-me que tinha feito melhor em aceitar o
      primeiro, mas, como cumpro as ordens de minha mãe, ela não
      tem que me ralhar.»
 
 Depois disto, João foi
      condenado a ficar em casa. Sua mãe sabia que mangavam com ele, e se
      riam dela. Uma manhã quis fazer uma experiência, e disse-lhe:
      
 ―Vai vender este carneiro à feira. Mas não te
      deixes enganar. Não o entregues senão a quem te der o preço
      mais elevado.»
 
 ―Está bem, agora entendo, e
      sei o que hei de fazer.»
 
 [125]―Quanto
      queres por esse carneiro?
 
 ―Minha mãe disse-me que
      o não vendesse senão pelo preço mais elevado.
      
 ―Quatro mil réis?»
 
 ―É o
      preço mais elevado?»
 
 ―Pouco mais ou menos.»
      
 ―É minha a lã e o carneiro, disse um rapaz que
      trepara a uma escada.
 
 ―Quanto?»
 
 ―Dez
      tostões:»
 
 ―É menos, respondeu
      timidamente o João.»
 
 ―Sim, mas vês até
      onde chega esta escada. Em toda a feira não há um preço
      mais elevado.»
 
 ―Tem razão. É seu o
      carneiro.»
 
 Desde esse dia o João Pateta não
      tornou a ser encarregado de vender ou comprar coisa alguma.
 
      
 
 
 [126]
    
      
 
 Era uma vez uma rainha, que se lastimava por não ter
      filhos. Um dia de Inverno, enquanto bordava num bastidor de ébano
      olhando de vez em quando pela janela, para ver cair os flocos de neve no
      chão, distraída, picou-se num dedo e saiu uma gota de
      sangue.
 
 ―Como eu desejaria ter uma filha, que tivesse uns
      beiços tão vermelhos como este sangue, uma pele branca como
      esta neve, e uns cabelos negros como este ébano.»
 
      Algum tempo depois os seus desejos realizaram-se, e deu à luz uma
      filha, que tinha uma linda boca vermelha, cabelos negros e o corpo tão
      branco, que lhe chamavam Branca de Neve. Porém esta feliz mãe
      não gozou muito tempo da sua felicidade. Morreu, e o rei tornou a
      casar com uma mulher duma grande beleza, e dum orgulho não menos
      extraordinário. Era tão formosa que se considerava a mulher
      mais perfeita do universo. Algumas vezes fechava-se no seu quarto, e
      colocando-se diante dum espelho mágico dizia-lhe:
 
      ―Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda
      que há no mundo?»
 
 ―És tu, respondia o
      espelho.»
 
 [127]No entanto
      Branca de Neve crescia, e de dia para dia se tornava mais formosa. Tinha
      apenas sete anos, e já ninguém a podia ver sem ficar
      maravilhado. Um dia a orgulhosa rainha, sentando-se diante do seu espelho,
      disse-lhe:
 
 ―Meu fiel espelho, responde-me: qual é
      a mulher mais linda que há no mundo?»
 
 ―Não
      és tu, não és tu. Branca de Neve é mais linda.»
      
 A estas palavras a orgulhosa rainha sentiu no coração
      uma dor aguda, como uma punhalada, e ao mesmo tempo sentiu um ódio
      mortal pela inocente Branca. Não podia sossegar nem de dia, nem de
      noite. Para satisfazer o seu ódio, chamou um criado, e disse-lhe:
      
 ―Quero que Branca desapareça. Conduze-a à
      floresta, mata-a, e, para me provar que as minhas ordens foram executadas
      pontualmente, traz-me o coração.»
 
 O criado
      levou Branca para o fundo da floresta, pegou numa faca, e dispunha-se a
      executar a ordem que recebera. A pobre criança chorava e
      lamentava-se, e pedia-lhe que a não matasse, porque ela não
      tinha feito mal a ninguém, e queria viver. O criado, comovido com
      aquelas lágrimas, não teve coragem, e abandonou-a na
      floresta, pensando que se as feras a devorassem a culpa não era
      dele, mas sim da rainha. Assim fez, e para mostrar o coração
      de Branca à rainha, matou um cabrito, e tirou-lhe o coração.
      A rainha ao ver aqueles despojos sangrentos ficou contentíssima, e
      disse consigo: Enfim, morreu a minha rival, e nenhuma mulher no mundo
      é tão bela como eu.
 
 [128]A
      pobre Branca, abandonada na floresta, não tinha morrido, mas estava
      cheia de medo. Pela primeira vez na sua vida punha os pés nas
      pedras, e andava pelo meio do mato que lhe rasgava o vestido, e pela
      primeira vez também via animais ferozes. Mas as feras não
      lhe faziam mal algum, o deixavam-na andar. No fim do dia tinha atravessado
      sete montanhas.
 
 À noite chegou ao pé duma casinha
      muito pequenina. Estava morta de fome e de sede. Entrou na casa, onde tudo
      estava muito arranjado e muito limpo. Havia uma mesa pequena, e sobre a
      mesa, coberta com uma toalha de brancura irrepreensível, sete
      pratos pequenos, sete garrafas pequenas, e ao longo da parede sete camas
      muito pequeninas. Branca comeu um pouco do que estava nos pratos, bebeu
      uma gota de vinho de cada copo, deitou-se na cama, rezou, e adormeceu
      profundamente.
 
 Momentos depois os donos da casa entraram. Eram
      sete mineiros pequeninos, cada um com uma lanterna dependurada na cintura.
      Viram logo que tinham gente em casa. Um deles disse:
 
 ―Quem
      comeu o meu pão?»
 
 E os outros sucessivamente:
      
 ―Quem pegou no meu garfo?»
 
 ―Quem comeu
      o meu caldo?»
 
 ―Quem bebeu o meu vinho?»
      
 E enfim um deles:
 
 ―Quem está aí
      deitado na minha cama?»
 
 Reuniram-se todos à roda
      do pequeno leito em que dormia Branca. À luz das lanternas viram o
      doce rosto da criança, que dormia tranquilamente, [129]e afastaram-se sem fazer bulha, para a não
      acordar. Branca no dia seguinte de manhã ficou um pouco assustada,
      quando viu perto de si aqueles sete anões das montanhas. Mas eles
      disseram-lhe com brandura, que não tivesse medo, e perguntaram-lhe
      donde vinha, e como se chamava. Branca contou a sua triste história,
      e os anões disseram-lhe:
 
 ―Queres tu ficar
      connosco, para tomar conta da nossa casa?»
 
 ―Da
      melhor vontade, respondeu Branca, completamente sossegada.»
      
 Começou logo o seu serviço, e continuou-o regularmente
      todos os dias. Limpava os móveis, e fazia o jantar. Os anões
      iam trabalhar para as minas de ouro e de diamantes, e quando voltavam
      achavam tudo em ordem.
 
 Durante esse tempo a rainha andava
      satisfeita, quando pensava que já não tinha que recear uma
      rival. Sentou-se outra vez diante do seu espelho, e disse-lhe:
 
      ―Meu fiel espelho, não é verdade que eu sou agora a
      mulher mais linda que há no mundo?»
 
 E o espelho
      respondeu:
 
 ―Sim, nos teus palácios e nos teus
      castelos, mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é
      mais linda do que tu.»
 
 Ouvindo esta resposta a orgulhosa
      rainha, sentiu de novo um golpe cruel, e determinou tornar a fazer
      desaparecer a inocente Branca. Mas de que modo? Uma manhã partiu
      disfarçada em vendedeira ambulante, com um cesto cheio de objectos
      de fantasia. Foi direita às sete montanhas, e bateu à [130]porta da casinha, gritando: «Quem quer
      comprar bonitas jóias?»
 
 Os anões tinham
      recomendado a Branca que desconfiasse das caras estranhas, receando os
      emissários da rainha, e ela tinha prometido ser prudente. Mas,
      quando viu as lindas coisas que a vendedeira tinha no cesto, esqueceu-se
      das suas promessas.
 
 ―Veja este rico colar, minha menina,
      eu mesmo lho vou pôr ao pescoço.»
 
 Branca
      consentiu, e a rainha estrangulou-a, e foi-se embora. Quando os anões
      voltaram, viram a infeliz Branca estendida no chão e completamente
      inanimada. Arrancaram-lhe o colar, e deitaram-lhe nos lábios
      algumas gotas dum licor amarelo. Branca começou a respirar, voltou
      a si pouco a pouco, e contou aos seus bons amigos o que lhe tinha
      acontecido.
 
 ―Podes estar certa, disseram-lhe eles, que
      essa vendedeira não era outra pessoa, senão a tua inimiga, a
      rainha. Toma cautela, não deixes entrar aqui ninguém, quando
      não estivermos em casa.»
 
 Ao entrar no seu palácio
      toda contente, colocou-se a rainha diante do espelho, e disse-lhe:
      
 ―Meu fiel espelho: Qual é agora a mulher mais linda que
      há no mundo? Responde.
 
 E o espelho respondeu:
 
      ―És tu nos teus grandes palácios e nos teus castelos,
      mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é mais linda do
      que tu.»
 
 A rainha enfureceu-se, e resolveu mais uma vez
      tentar aniquilar a infeliz Branca. Tornou-se a disfarçar [131]em vendedeira. Chegou às sete
      montanhas, e bateu à porta da cabana.
 
 ―Quem quer
      comprar lindas jóias? Branca veio à janela, e respondeu:
      
 ―Vá-se embora, aqui não entra ninguém.»
      
 ―Tanto pior para si, respondeu a malvada, olhe este pente de
      ouro. Já viu outro tão bonito?»
 
 Branca não
      pôde resistir ao desejo de possuir aquela jóia. Abriu a
      porta.
 
 ―Oh! minha linda menina, deixe-me pôr-lho na
      cabeça.»
 
 Ao dizer isto enterrou-lhe na cabeça
      o pente, que estava envenenado, e Branca caiu morta.
 
 À
      noite quando regressaram os anões, acharam-na pálida e fria.
      Tiraram-lhe o pente envenenado, reanimaram-na com a sua bebida, e tornaram
      a recomendar-lhe que fosse prudente.
 
 No entanto a cruel rainha
      voltava contentíssima para o seu palácio. Apenas chegou, foi
      direita ao espelho, e fez-lhe a mesma pergunta, a que o espelho respondeu
      como antecedentemente.
 
 ―Ah! é preciso que ela
      morra, ainda que para isso eu tenha de me sacrificar.
 
 Vestiu-se
      de camponesa com um cesto de maçãs. Entre elas havia uma que
      estava envenenada dum lado. Foi, e bateu à porta da cabana.»
      
 ―Quem quer comprar fruta, quem quer comprar?»
 
      ―Retire-se, disse Branca vendo-a pela janela, não deixo
      entrar ninguém, nem compro coisa alguma.»
 
 ―Está
      bem, não faltará quem compre estas ricas maçãs.
      Mas por ser tão bonita, quero dar-lhe uma.»
 
 [132]―Obrigada, não posso aceitar.»
      
 ―Imagina que está envenenada. Olhe, eu vou comer um
      pedaço. Ah! que boa que é! Nunca provei nada assim. Ao
      pronunciar estas palavras, a traidora mordia no lado da maçã,
      que não estava envenenado. Branca deixou-se tentar, levou à
      boca o outro pedaço, e caiu fulminada.
 
 ―Aí
      tens, para castigo da tua formosura.»
 
 Quando chegou ao
      palácio a rainha foi direita ao espelho, e perguntou-lhe:
      
 ―Meu fiel espelho, quem é agora a mulher mais linda?»
      
 E o espelho respondeu: 
 ―És tu, és tu.»
      
 ―Até que enfim!»
 
 Os anões
      estavam inconsoláveis. Debalde tinham tentado reanimá-la com
      o licor de ouro, e com outras bebidas ainda mais fortes. Branca continuava
      fria e inanimada. Choraram por ela durante três dias, e os
      passarinhos da floresta choraram também. No entanto as boas
      avezinhas não podiam acreditar que ela estivesse morta, e vendo o
      seu rosto tão tranquilo, as suas faces tão frescas, parecia
      que estava a dormir. Não quiseram enterrá-la. Meteram-na num
      caixão de cristal, e escreveram em cima. «Aqui jaz a filha
      dum rei;» puseram o caixão numa das sete montanhas, e um
      deles devia estar de guarda constantemente. Branca conservou-se assim
      durante muitos anos, sem que se notasse no seu rosto a mais pequena alteração.
      
 Um dia um formoso rapaz, filho dum rei, tendo-se perdido ao andar
      à caça, viu o caixão, e pediu aos anões que
      lho cedessem, fosse por preço que fosse.
 
 [133]―Somos muito ricos, e por nada deste
      mundo venderemos este caixão, que é o nosso tesouro.»
      
 ―Então dêem-mo, já não posso viver
      sem contemplar este rosto de mulher. Guardá-lo-ei na melhor sala do
      meu palácio. Peço-lhes que me façam isto.»
      
 Os anões, comovidos, consentiram. Quatro homens pegaram no
      caixão para o levarem. Um deles tropeçou numa raiz, e o caixão
      sofreu um balanço, que fez cair o bocado da maçã
      envenenada, que Branca não tinha engolido, e que lhe ficara na
      boca. Abriu logo os olhos, e ressuscitou. O jovem príncipe levou-a
      para o seu castelo, e casou com ela. O casamento fez-se com grande pompa.
      O príncipe convidou todos os reis e rainhas dos diferentes países,
      e entre elas a rainha inimiga de Branca. Apenas acabou de vestir um rico
      vestido, que devia atrair todos os olhares, pôs-se diante do
      espelho, e disse a rainha:
 
 ―Meu fiel espelho, qual a
      mulher mais linda que há do mundo?»
 
 E o espelho
      respondeu:
 
 ―Branca é mais formosa que tu.
      
 A estas palavras a rainha estremeceu, e teve tal medo que os seus
      crimes fossem descobertos, que morreu de repente.
 
 Branca viveu
      muitos anos, adorada de todos, e no seu palácio de princesa não
      se esqueceu dos anões que tinham sido os seus benfeitores.
      
 
 
 
 [134]
    
      
 
 Que frio! a neve caía, e a noite aproximava-se; era o
      último de Dezembro, véspera de Ano Bom. No meio deste frio e
      desta escuridão passou na rua uma desgraçada pequerrucha,
      com a cabeça descoberta e os pés descalços. É
      verdade que trazia sapatos ao sair de casa, mas tinham-lhe servido pouco
      tempo: eram uns grandes sapatos, que sua mãe já tinha usado,
      tão grandes, que a pequenita perdeu-os ao atravessar a rua a
      correr, entre duas carruagens. Um dos sapatos perdeu-o realmente; quanto
      ao outro fugiu-lhe com ele um garotito, com a intenção de
      fazer dele um berço para o seu primeiro filho.
 
 A
      pequenita caminhava com os pezinhos nus, arroxeados pelo frio; tinha no
      seu velho avental uma grande quantidade de fósforos, e levava na mão
      um maço deles. O dia correra-lhe mal; não tinha havido
      compradores, e por isso não apurara cinco réis.
 
      Pobre pequerrucha! que frio e que fome! Os flocos de neve caiam-lhe nos
      longos cabelos loiros, adoravelmente anelados em volta do pescoço;
      [135]mas pensava ela porventura nos seus
      cabelos anelados?
 
 As luzes brilhavam nas janelas, e sentia-se
      na rua o cheiro dos manjares; era a véspera de dia de Ano Bom: eis
      no que ela pensava.
 
 Deixou-se cair a um canto, entre dois
      muros. O frio enregelava-a cada vez mais, mas não se atrevia a
      voltar para casa: o pai bater-lhe-ia, porque não tinha vendido os
      seus fósforos. Além disso em sua casa fazia tanto frio como
      na rua. Moravam debaixo de um telheiro que o vento atravessava, apesar de
      o terem calafetado com palha e farrapos. As suas mãozinhas já
      quase que as não sentia. Ai! como um fosforozinho aceso lhe faria
      bem! Se tirasse do maço apenas um, um único, e ascendendo-o
      aquecesse os dedos enregelados! Tirou um: ritche! como estoirou!
      como ardeu! Era uma chama tépida e clara, como uma pequena
      lamparina. Que luz esquisita! Parecia-lhe estar sentada defronte de um
      enorme braseiro de ferro, cujo lume magnífico aquecia tão
      suavemente, que era um regalo.
 
 A pequerrucha ia já a
      estender os pezitos para os aquecer também, quando a chama se
      apagou repentinamente: achou-se sentada, tendo na mão uma pontita
      de fósforo consumido.
 
 Acendeu segundo fósforo,
      que ardeu, que brilhou, e o muro onde bateu a sua chama tornou-se
      transparente como vidro. Olhando através desse muro, a pequerrucha
      viu uma sala com uma mesa coberta de uma toalha alvíssima,
      deslumbrante de finas porcelanas, e sobre a qual uma galinha assada com
      recheio de ameixas e de batatas [136]fumegava
      exalando um perfume delicioso. Oh surpresa! oh felicidade! De repente a
      galinha saltou do prato, e caiu no chão ao pé da
      pequerrucha, com o garfo e a faca espetada no lombo. Nisto apagou-se o fósforo,
      e viu apenas diante de si a parede fria e tenebrosa.
 
 Acendeu
      terceiro fósforo, e achou-se imediatamente sentada debaixo de uma
      magnífica árvore do Natal; era ainda mais rica e maior do
      que a que tinha visto no ano passado através dos vidros de um armazém
      sumptuoso.
 
 Nos ramos verdes brilhavam centenares de balões
      acesos, e as estampas coloridas, como as que há às portas
      das lojas, pareciam sorrir-lhe. Quando ia agarrá-las com as duas mãos,
      apagou-se o fósforo; todos os balões da árvore do
      Natal começaram a subir, a subir, e viu então que se tinha
      enganado, porque eram estrelas. Caiu uma delas, deixando no céu um
      longo rasto de fogo.
 
 ―É alguém que está
      a morrer, disse a pequerrucha; porque a sua avó, que lhe queria
      tanto, mas que já morrera, dissera-lhe muitas vezes: «Quando
      cai uma estrela, sobe para Deus uma alma.»
 
 Acendeu ainda
      outro fósforo: deu uma grande luz, no meio da qual lhe apareceu sua
      avó, de pé, com um ar radioso e suavíssimo.
      
 ―Minha avó, exclamou a pequenita, leva-me contigo. Eu
      sei que te vais embora quando se apagar o fósforo. Desaparecerás
      como a panela de ferro, a galinha assada, e a bela árvore do Natal.
      
 Acendeu o rosto do maço, porque não queria [137]que sua avó lhe fugisse, e os fósforos
      espalharam um clarão mais vivo que a luz do dia. Nunca sua avó
      tinha sido tão formosa. Pôs ao colo a pequerruchinha, e ambas
      alegres, no meio deste deslumbramento, voaram tão alto, tão
      alto, que já não tinha nem frio, nem fome, nem agonias:
      haviam chegado ao Paraíso.
 
 Mas quando rompeu a fria
      madrugada, encontraram a pequerrucha, entre os dois muros, ao canto, com
      as faces incendiadas, o sorriso nos lábios... morta, morta de frio
      na última noite do ano. O dia de Ano Bom veio alumiar o pequenino
      cadáver, sentado ali com os seus fósforos, a que faltava um
      maço, que tinha ardido quase inteiramente.―Quis aquecer-se,
      disse um homem que passou.» E ninguém soube nunca as lindas
      coisas que ela tinha visto, e no meio de que esplendor tinha entrado com a
      sua velha avó no dia do Ano Novo.
 
 
 
 
      [138]
    
      
 
 Chamava-se Margarida, e estavam à espera dela no céu,
      porque Deus tinha dito:―É uma boa alma, e, como lá em
      baixo no mundo lhe pode acontecer alguma desgraça, vou trazê-la
      um destes dias para o paraíso.»
 
 Margarida era uma
      virgem cândida, matinal como a aurora, fresca como ela; todos os
      dias ao acordar rezava as orações, que sua mãe lhe
      tinha ensinado, e vestia-se depois na sua pequenina alcova. E, como não
      tinha jóias preciosas nem ricos adornos, dispensava o espelho.
      
 Depois disto, para viver honradamente, punha-se a trabalhar.
      
 E, ao mesmo tempo cigarra e abelha, trabalhava cantando uma bela canção
      de amor e de glória, que já embalara muitos berços, e
      que podia sensibilizar uma alma inocente, sem lhe perturbar a limpidez.
      
 Numa tarde de Verão, estava ela sentada à porta de
      casa fiando linho, à hora em que as estrelas começam a
      aparecer, uma a uma no firmamento.
 
 Estava Margarida cantando a
      sua canção, quando [139]passou
      por ali uma das suas vizinhas, que ia a uma romaria, muito asseada, com um
      vestido novo. Parou diante de Margarida, para que lhe admirasse os seus
      brincos e o colar de ouro que levava ao pescoço; apertou-lhe a mão
      para que visse bem o anel que brilhava no seu dedo, e foi-se embora a rir,
      toda contente. E Margarida foi-a seguindo com um olhar de inveja, o que
      inquietou no paraíso o seu anjo da guarda.
 
 O fio de
      linho já não passava tão rapidamente entre os dedos
      de Margarida, a roda cessara o seu barulho monótono, e o fuso caíra-lhe
      das mãos.
 
 Ao cair o fuso despertou do êxtase,
      abriu os olhos, e viu diante de si um cavaleiro magnificamente vestido,
      tendo na mão um gorro de veludo preto, com uma pluma vermelha, da
      cor do fogo. O cavaleiro saudou-a respeitosamente, e, com uma voz
      harmoniosa e galanteadora, perguntou-lhe:
 
 ―Qual é
      o caminho da cidade?»
 
 Margarida estendeu a mão
      para lho indicar, e o forasteiro inclinando-se tirou do dedo um anel de
      ouro com um diamante, que brilhava como uma estrela, e meteu-o no dedo de
      Margarida, que o achou mais belo do que o anel da sua companheira. O rosto
      do cavaleiro alumiou-se então com um sorriso estranho e diabólico.
      
 Nisto passou por ali um mendigo coberto de farrapos, parou diante de
      Margarida, e pediu-lhe uma esmola.
 
 Margarida tirou do dedo o
      anel, e ofereceu-o ao pobre desgraçado.
 
 O cavaleiro então,
      soltando um grito de cólera, ia lançar-se sobre Margarida,
      mas o mendigo―[140]que era o seu anjo
      da guarda disfarçado―cobriu-a com as asas. E o cavaleiro,
      isto é Satanás, que tinha vindo para a tentar, recuou
      aniquilado diante do espírito celeste.
 
 
 
 
      [141]
    
      
 
 Era uma vez um pobre mendigo, que bateu à porta duma
      humilde cabana a pedir esmola, para poder continuar a sua viagem. Mas não
      vendo, nem ouvindo ninguém, abriu a porta de mansinho e entrou no
      casebre; viu então uma pobre velhinha muito doente, que lhe disse:
      
 ―«Ai! não te posso dar nada, porque nada tenho.»
      
 E foi-se embora o mendigo, voltando dali a instantes, a bater
      à mesma porta.
 
 ―Pelo amor de Deus! gritou a
      velhinha, já te disse que não tenho nada que te dar.»
      
 ―Foi por isso que eu voltei―disse em voz baixa o
      mendigo.
 
 E, aproximando-se da velha carinhosamente, tirou do
      bolso, pondo-os em cima da mesa, muitos bocados de pão e algumas
      moedas de dez réis, que lhe tinham dado depois de ter estado com a
      velha a primeira vez.
 
 ―Aqui te fica isto, santinha―disse-lhe
      ele afectuosamente, indo-se embora sem que a pobre mulher tivesse tempo de
      lhe agradecer.»
 
 Não sabemos qual era o nome do
      mendigo; mas os anjos escrevê-lo-ão no Paraíso, e mais
      tarde nós o viremos a saber.
 
 
 
 
 [142]
    
      
 
 O linho estava coberto de flores admiravelmente belas, mais
      delicadas e transparentes do que asas de moscas. O sol espalhava os seus
      raios sobre ele, e as nuvens regavam-no, o que lhe causava tanto prazer,
      como o dum filho quando a mãe o lava e lhe dá um beijo.
      
 ―Segundo dizem sou bem bonito, murmurou o linho, estou muito
      crescido, e serei brevemente uma rica peça de pano. Sinto-me feliz.
      Não há ninguém que seja mais feliz do que eu sou.
      Tenho saúde e um belo futuro. A luz acaricia-me, e a chuva
      encanta-me e refresca-me. Sim, sou feliz, feliz a mais não poder
      ser!»
 
 ―Como és ingénuo! disseram as
      silvas do valado; tu não conheces o mundo, de que nós outras
      temos uma larga experiência.»
 
 E rangendo
      lastimosamente, cantaram:
 
    
      
 ―Não tão cedo como vocês imaginam,
      respondeu o linho; está uma bela manhã, o sol resplandece,
      [143]e a chuva faz-me bem; sinto-me crescer e
      florir. Sou muitíssimo feliz.»
 
 Mas um belo dia
      vieram uns homens que agarraram no linho pela cabeleira, arrancaram-no com
      raízes e tudo, e deram-lhe tratos de polé. Primeiro
      mergulharam-no em água, como se o quisessem afogá-lo, e
      depois meteram-no no lume para o assar. Que crueldade!
 
 ―Não
      se pode ser mais feliz, pensou o linho de si para si; é necessário
      sofrer, o sofrimento é a mãe da experiência.»
      
 Mas as coisas iam de mal para pior. Partiram-no, assedaram-no,
      cardaram-no, e ele sem compreender o que lhe queriam. Depois, puseram-no
      numa roca, e então perdeu a cabeça inteiramente.
 
      ―Era feliz de mais, pensava o desgraçado linho no meio
      daquelas torturas; devemo-nos regozijar, mesmo com as felicidades
      perdidas.»
 
 E ainda estava dizendo―perdidas, e já
      o estavam a meter no tear e a transformá-lo numa peça de
      pano.
 
 ―Isto é extraordinário, nunca o
      imaginei; que boa sorte a minha, e que grandes tolas aquelas silvas quando
      cantavam:
 
    
      
 Agora é que eu principio a viver. Padeci muito, é
      verdade, mas por isso também agora sou mais feliz do que nunca.
      Sinto-me tão forte, tão alto, tão macio! Ah! isto
      é bem melhor do que ser planta, mesmo florida, ninguém trata
      da gente, e [144]não bebemos outra
      água a não ser a da chuva. Agora é o contrário:
      que cuidados! As raparigas estendem-me todas as manhãs, e à
      noite tomo o meu banho com um regador. A criada do sr. cura fez um
      discurso a meu respeito, e provou perfeitamente que era eu a melhor peça
      da paróquia. Não posso ser mais feliz.»
 
      Levaram o pano para casa, e entregaram-no às tesouras. Cortaram-no
      e picaram-no com uma agulha. Não era lá muito agradável,
      mas em compensação fizeram dele uma dúzia de camisas
      magníficas.
 
 ―Agora decididamente começo a
      valer alguma coisa. O meu destino é abençoado, porque sou
      útil neste mundo. É preciso isso para se viver em paz, e
      ser-se feliz. Somos hoje doze pedaços, é verdade, mas
      formamos um só grupo, uma dúzia. Que incomparável
      felicidade!
 
 O pano das camisas foi-se gastando com o tempo.
      
 ―Tudo tem fim, murmurou ele. Eu estava disposto a durar ainda,
      mas não se fazem impossíveis.»
 
 E as camisas
      foram reduzidas a farrapos, a trapos, e imaginaram que era finalmente a
      sua morte, porque foram rasgados, amassados, fervidos, sem adivinharem o
      que lhes queriam. Mas de repente transformaram-se em papel branco magnífico.
      
 ―Oh que agradável surpresa! exclamou o papel, agora sou
      muito mais fino do que dantes, e vão cobrir-me de letras. O que não
      escreverão em cima de mim! Tenho uma fortuna maravilhosa!»
      
 E escreveram nele as mais belas histórias, que foram lidas
      diante de inúmeros ouvintes, e os tornaram mais sábios e
      melhores.
 
 [145]―Ora aqui está
      uma coisa muito superior a tudo que eu tinha imaginado, quando vivia na
      terra, coberto de flores. Como poderia eu imaginar que ainda havia de
      servir para alegrar e instruir os homens! Não sei explicar o que me
      está acontecendo, mas é verdade. Deus sabe perfeitamente que
      nunca fui ambicioso, e que nunca me queixei da minha sorte; foi Ele que
      gradualmente me elevou, até chegar à maior glória.
      Cada vez que me lembro da cantiga das silvas: «Acabou-se, acabou-se»
      tudo pelo contrário se me apresenta debaixo do aspecto mais
      risonho. Vou viajar, percorrer o mundo inteiro, para que todos me possam
      ler e instruir-se. Antigamente eu estava carregado de florinhas azuis;
      agora as minhas flores são os mais elevados pensamentos. Sinto-me
      feliz, imensamente feliz!»
 
 Mas o papel não foi
      viajar; entregaram-no ao tipógrafo, e tudo que lá estava
      escrito, foi impresso para fazer um livro, milhares de livros, que
      recrearam e instruíram uma infinidade de pessoas. O nosso bocado de
      papel não teria prestado o mesmo serviço, ainda que desse a
      volta à roda do mundo. A meio caminho já estaria gasto.
      
 ―É justo, disse o papel, não tinha pensado
      nisso. Fico em casa, e vou ser considerado como um velho avô! fui eu
      que recebi as letras, as palavras caíram directamente da pena sobre
      mim, fico no meu lugar, e os livros vão por esse mundo fora. A sua
      missão é realmente bela, e eu estou contente, e julgo-me
      feliz.
 
 O papel foi empacotado, e lançado para uma
      estante.
 
 ―Depois do trabalho é agradável o
      descanso, [146]pensou ele. É neste
      isolamento que a gente aprende a conhecer-se. Só de hoje em diante
      é que eu sei o que contenho, e conhecermo-nos a nós mesmo
      é a verdadeira perfeição. Que me irá ainda
      acontecer? Progredir, está claro.»
 
 Passados
      tempos, o papel foi atirado ao fogão para o queimarem, porque o que
      o não queriam vender ao merceeiro para embrulhar açúcar.
      E todas as crianças da casa se puseram à roda; queriam vê-lo
      arder, e ver também, depois da labareda, as milhares de faíscas
      vermelhas, que parecem fugir, e se apagam instantaneamente uma após
      outra. O maço inteiro de papel foi atirado ao lume. Oh! como ele
      ardia! Tornara-se numa grande chama, que se erguia tão alto, tão
      alto como o linho nunca erguera as suas flores azuis; a peça de
      pano nunca tinha tido um brilho semelhante.
 
 Todas as letras,
      durante um segundo, se tornaram vermelhas: todas as palavras, todas as
      ideias desapareceram em línguas de fogo.
 
 ―«Vou
      subir até ao sol;» dizia uma voz no meio da labareda, que
      pareciam mil vozes reunidas numa só. A chama saiu pela chaminé,
      e no meio dela volteavam pequeninos seres invisíveis para os olhos
      do homem. Eram tantos quantos tinham sido as flores que o linho tinha
      dado. Mais leves que a chama, de quem eram filhos, quando ela se
      extinguiu, quando não restava do papel senão a cinza negra,
      ainda eles dançavam sobre essa cinza, e formavam, tocando-a,
      pequeninas centelhas encarnadas.
 
 As crianças cantavam
      à roda da cinza inanimada:
 
 [147]
    
      
 Mas cada um dos pequeninos seres dizia: «Não, não
      se acabou; agora é que é o melhor da festa. Sei-o, e
      julgo-me feliz.»
 
 As crianças não puderam
      ouvir, nem compreender estas palavras; mas também não era
      necessário, porque as crianças não devem saber tudo.
      
 
    
      
 
 
 
    
      
 
    
      
 
 
 
    
| Original | Correcção | ||
| #pág. 56 | entrar? | ... | entrar! | 
| #pág. 58 | João. | ... | João: | 
| #pág. 58 | embora? | ... | embora. | 
| #pág. 107 | encontremos | ... | encontraremos | 
      
 
 
 
 A propriedade deste livro pertence no Brasil ao
      sr. Luís de Andrade, residente no Rio de Janeiro.
    
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